quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Há.

O amor existe e se esconde trapaceiro nas minhas mangas, enganando primordialmente a mim mesma. O amor tem um sabor que agora eu amargo, mas que já foi doce e escorreu pelo canto da minha boca. O amor tem cores brilhantes, marcas discretas e inesperadas nas pedras dos meus dias, dias esses preenchidos pelo granito imutável da rotina preto-e-branca. Sei que estou daltônica. O amor não tem sílaba nem meia vontade – ele existe como unidade, como coisa que já nasce destinada a morrer. Não o encontro dentro do armário da cozinha, nem na gaveta das calcinhas, nem na cômoda ao lado do abajur. Não está mais gravado no espelho cheio de vapor do chuveiro quente, nem na toalha de mesa manchada com o gole do vinho não tomado. O amor se esvaiu das minhas paredes mornas, das antigas curvas do meu corpo, das antigas palavras choradas na vitrola. Assim como entrou, um dia saiu, e deixou no lugar nada mais.

O amor tem voz rouca, olhos semicerrados e um ar melancólico. Tem vontade de carne e perfume barato. Enganador. O amor não tem escrúpulos, respeita apenas a regra que impõe a si mesmo de ser visceral. Sorri com ar de satisfação, parasita de minha força vital – me toma inteira e quando eu vejo, estou desnutrida, consumida, entregue e sem paz. Morde o meu pescoço e bebe tudo o que há em mim.

O amor amanhece com sua umidez característica, se espalha pelas frestas de qualquer descuido das cortinas, das muralhas, das defesas mil. Dá vertigem, fadiga, alucinação. O amor rasteja pelas cadeiras em que sento, enquanto espera o momento certo para amarrar de vez os meus pés e me deixar imóvel. Numa esquina, sobe pela minha espinha e vira um ponto de luz – o qual eu, sem nenhum poder de decisão, simplesmente sigo.

O amor tem nariz de palhaço, traz um outro consigo e prende na minha cara. Lança fogos de artifício que explodem dentro do peito, brilham nos olhos e viram gargalhada. O amor dispensa qualquer conversa, ele se instala mudo, e no seu silêncio preenche todo o espaço. Dói latente, escorre, sangra, até curar – e depois volta com outro nome, outro número de telefone. O amor é o fato intolerável da vida sem o qual a vida não existe.