terça-feira, 23 de março de 2010

Confessionário


Se deveria haver alguma limitação pro pensamento, esqueceram de me avisar. De qualquer forma, está imposto e já me habita inteira. Sinto o gosto pelo olhar, e gosto dessa conversa muda. Confesso. Me basta a cara lavada, a melhor das intenções, e aí estou no jogo. Fingida. Mas não duro muito, uma grande pena - o riso me denuncia, no canto da boca, mesmo quando ainda invento uma boa desculpa. Há um quê de implícito nas atitudes milimetricamente não calculadas. Um suicídio, um convite ao deleite, que eu já aceitei antes mesmo do pedido. Uma noite inteira para todas as máscaras, os papéis diurnos e intransponíveis. Lá e cá. Assim é bom. Há um pecado em cada suspiro, e pros devaneios, olhos fechados. Sem censura. Palavras soltas, e só elas. O resto todo está preso, contido, amarrado, insaciável e louco pra sair. Estou suando por baixo do ar de quem não quer nada. Um tom doce pra acidez do sentimento. Há um descaramento delicioso em toda essa transgressão oculta, devo dizer. Sem rosto, sem idade, sem nome, sem endereço fixo. Sem a menor possibilidade.

segunda-feira, 15 de março de 2010

87 anos

Esse é o meu nome, e eu não sei o que significa. Se perguntarem por mim, diga que estou febril, que tenho todos os efeitos dessa inquietude em chamas. Não há o que dizer, só esperar secar. Já já vou ter 87 anos e nesse meio tempo tento incansavelmente descobrir do que são feitas as verdades absolutas –além de todas as outras não tão absolutas assim. Não é tudo meio irônico? Fico aqui pensando que pode haver, sim, milagre num copo de água mais gelada. Ou num mundo particular onde não importa se está certo ou errado. Há algo fora de mim que acende e apaga todos os dias, à espera de olhos leves, mas enquanto isso, estou tomada pela plenitude de um calor que me priva das possibilidades mínimas, num pisca-pisca alerta de sirenes altas. Tenho medo e nenhum fundamento. Se há destino, estou agora perdendo tempo, sofrendo por algo que já espera por mim. Mas só enxergo uma onda quente e forte vindo em minha direção, um fogacho preso na minha garganta, e a dúvida: será que eu vou? Não sei decidir.
Já já, 87 anos.