segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Retrato

Senhora de mãos para cima, gritando sua prece
a saia no couro enquanto ela desce.
ê maculelê.
Menina de olhos distantes, sozinha num canto,
desfaz o seu manto, sente que não merece
No fundo, no fundo, a Bahia está logo ali.

domingo, 30 de outubro de 2011

"...E o meu perfume na rosa dos ventos..."

Meu corpo nu, solitário, numa cama pequena cheia de cobertas. Essa noite é de silêncio, de barulho de chuva e escuro. Tento não pensar, mas meu corpo não deixa. Me invadem pensamentos sussurrados, lembranças doces de um beijo, aquele beijo, e todos os outros. Os olhos que piscam à convite, o lábio fino que preenche, a delicadeza do toque. As milhões de coisas ainda não ditas, a começar pelo desejo, e o seu acontecer sem limites, sem tentar segurar o impulso involutário da pele. Quando o sono vem, ele traz a paz de mãos dadas.
Menina pouco contida, quer levar cor a uma noite sem estrelas. Presa em sua própria armadilha, a fada madrinha agora tem olhos sem promessas. Resta o caminho inteiro, passos condicionados pisando uma terra seca sem outras surpresas... Ilusão achar que não estava sobre cordas bambas. É quando vem a chuva molhar o rosto, trazer o riso, florescer os lírios e o esquecido. Caem do céu palavras em forma de poesia. No riso, a lágrima, cachos de três cores diferentes misturados a um preto cor madrugada. As pernas como entrelaço, cobertor de gente, transformando em verdade a urgência. Pra fora da janela não existe coisa qualquer com importância.
Menina muito contida, tamanho contido, vestido contido, transformando a noite fria em fogueira ardente. Fala menos com a voz que com o resto. Marcas discretas no rosto porcelana, sem a menor pretensão de parecer menos forte do que realmente é. Pálpebras leves guardando os olhos, permitindo que o cheiro, e só ele, invada o espaço e sirva a que veio. No pulso firme não há relógio, não há pressa para que se dêem os fatos. Tudo ao seu tempo, contrapondo o ruído de desquilíbrio ao redor. Monstros que cantam a sua sinfonia, respeitando a ordem natural em que a vida impõe os fatos. Sobra o que se tem agora, e o que se tem é o beijo. Enquanto possibilidade, ele é melhor que tudo.
Você que me faz cantar...
Para além da boca há o seu nome.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Repercutir

Gosto dos óculos e da roupa preta com sapatilhas baixas, miniatura. Dos olhos pequenos desviados para o teto, tentando pensar um jeito de não se deixarem tão facilmente transparecer. Nos cômodos todos, livros, livros, uma foto do que foi, do que deveria ainda ser, e um monte de santinhos lembrando sempre a mesma prece. Há ali um silêncio que preenche todo o espaço, sussurra os passos pelos cantos, e revela nua a alma.
Uma flor cheia de intenções habita a garrafa de água fresca em cima da mesa. Na geladeira, lembretes de restaurantes, desses que facilitam a vida dos que não têm a perder. Há lembretes por toda a casa. Lembram da dor, da solidão, do ar irônico, da doce timidez, dos pensamentos trêmulos, do quase desejo. O espaço todo na verdade é o labirinto - quando se adentra, não há como sair. Nem que se queira.
Mais fácil assim, à meia luz deixar que as estantes falem por si. Mesmo para observadores ruins, a voz viva grita tão suave seus deliciosos segredos, que não há como deixar de ver. De todos os sentidos sutilmente explorados, restou apenas a iminência do toque. Ah, o toque... Riso e choro se confundem na mais honesta manifestação do que habita o peito. OS subterfúgios não servem mais para nada. Diante de uma imponente idéia quase amedrontadora, desconstroem-se todas as defesas, e agora, às quase duas, é um caminhar leve sobre as águas.
Aguardo o despertar de quem decidiu não fechar os olhos. Porque fechados deixariam de ver através da doce sensação de se sentir inteiro, eles que não desmentem mais o jogo de palavras. Sim, repercute ainda agora em mim. O secreto explícito discurso do olhar...

domingo, 23 de outubro de 2011

Desobtuso

A outra cerveja já foi por conta da imaginação. Exercício bom, esse de dizer absolutamente tudo sem nem ao menos falar. A tarde longa estendeu os pensamentos, que vinham leves e saiam mordiscando a boca. Criou-se, então, uma lingua só dali, pra nem antes, nem depois, nem mais ninguém. O que importa é o instante agora, absoluto.
Olhos rasgados, discurso afiado, palavra rasgada- querem me desafiar? Eu topo o desafio. Entendo apenas as meias verdades, o quase recado, mas as entrelinhas são um convite forte demais para se recusar. Finjo que entendo o resto com um sorrisinho de canto de boca. No fundo, sinto que sei... Misterioso ar de quem carrega uma delícia de ser dentro de si. E mostra apenas o que quer mostrar...
Ouço uma música dessas que fazem valer a vida inteira, penso no momento em que senti ali, no copo e no rosto, o mundo todo. Gente de alma grande faz a gente voar. Mantenho o gosto do jogo doce de advinhação, entre outras coisas mais, esse resto sussurrado, dito baixinho demais pra ser ouvido sob a explícita assim, tão ruidosa. Sorte de quem sabe, por fim, a boa arte de ler lábios, quem observa para além do óbvio. Para além da boca há...

domingo, 2 de outubro de 2011

- Em andamento -

Tentaram me conter, colocaram-me numa forma e me levaram ao forno quente. A sensação morna me bastava, e foi justa por um tempo longo demais, até eu me dar conta de que calor e frio, medo e angústia, atrevimento e prazer, tudo isso ao mesmo tempo, me leva a um lugar muito mais meu. Quando pensaram que eu estava quase pronta, no quase decidir de uma vida inteira, percebi que não sou feita de quases. Ou pelo menos não os definitivos. Eu quero menos, quero mais, o meio-tropeço, e nessa batedeira inexausta, quero encontrar o ponto onde cabe a mim, corpo, alma e coração. Sem pré-fabricação, sem sonhos grandes demais e de plástico. Nada que não seja meu;
Vento grande, dono de todos os por quês, sabe antes mesmo da verdade a verdade do coração. Pra onde vai me soprar? Habito um ponto dentre esses muitos de luz longe, ergo uma estrutura concreta e fria de indecisão e medo, agonizante. Nada definitivo ou óbvio demais. Planta de raiz forte essa minha vontade de escolha, meu desejo de voar. Fé e pertencimento. Qual é a direção – há de haver uma certa? Uma para mim?
O espelho já não responde mais minha inquietação. Enquanto isso, falo baixinho, esquivando-me da necessidade de me fazer ouvir. Se eu pudesse, vestiria apenas a minha coragem e iria ouvir outra língua, outra cor, outro tipo de café da manhã, pés no chão, mochila nas costas, em busca de gente, de inspiração. Das incertezas todas me resta apenas a convicção extravagante de que desfrutar da vida, no fundo, é estar com o mundo, com os outros. Disso que eu gosto, e sei. Raro sorriso de auto-percepção...
Apesar de bordas claras, ainda me vejo misturada ao meu carinho que aguardo entrar por essa porta. Misturada a uma das rochas do lugar de agora, eu, onda que bate e volta... Já não sei construir castelos.