terça-feira, 5 de outubro de 2010

Mi fá Sol



Não chega ainda a ser doce a sensação do despertar, mas tem um cheiro bom. Em agradecimento à vida hoje me comprei um par de lírios tímidos, mas potentes na capacidade de preencher o ambiente com o sabor de uma boa nova no ar. Decidi que não leria alheia o jornal da manhã e simplesmente faria parte do dia. Vestida da minha cara lavada mais que três vezes para tomar coragem, lancei-me para além das muralhas em direção à... Luz!

Aos poucos o desconforto sem nome vai dando lugar a uma sensação mais cômoda de rotina, e eu tento exigir menos de mim. Meu telefone toca, a caixinha na tela do computador pisca mostrando que há coisas a serem vistas, o bloquinho de notas ganha tinta de caneta e um asterisco grande se destaca no canto superior do papel cor de giz– são os sinais de que aos poucos eu estou de volta à ativa, de volta ao caminho diário, ao enfrentamento e deliciamento do cotidiano. Aos poucos, tímida como os lírios, estou voltando a mim.
Entro em casa mais tarde do que gostaria, encho duas garrafas de água e espero elas gelar.
Há uma bailarina cubana, uma morena com vestido de flores e uma baiana de seios fartos que dançam em cima da minha mesa da sala. Elas me olham enquanto eu dobro as pernas vestida em um moletom velhinho e largo, apago as luzes e ligo a música, ao mesmo tempo em que penso sobre o que preenche o meu viver, o meu substrato. É meio bobo revirar todas essas coisas novamente, tão bobo quanto inevitável. Às vezes eu queria fechar os olhos e dormir, sem precisar exercitar tais pensamentos – mas é pretensão demais achar que de um dia pro outro eu vou afastar de mim aquilo que é intrinsecamente meu, e que me causa tanto gozo quanto desprazer. Essa sou eu, neurótica, explícita, infinita e miúda. Assim.
Enquanto busco um sol lá fora na madrugada fria e interminável, vou me dando conta de que não faz tanto mal assim querer tocar aquilo que não foi feito pra ser entendido. Faz parte do processo de aceitação das coisas como elas se dão, mas mais que isso, faz parte do meu processo de crescimento, do meu entendimento de que é passível não entender e ainda assim ser grande. Independente de quem se é, a verdade é que todo mundo tem um potencial energético infindável dentro si, um sol que é só seu e brilha à medida que se deixa brilhar.
Meu sol é o sol de touro, carente e carinhoso. É o sol das auroras das manhãs mornas, da esperança no poder arrebatador do recomeço. O meu sol é o da poesia oculta nas pequenas maravilhas extraordinárias que habitam o dia-a-dia comum de todo mundo, e me causam tamanho encantamento. É o sol do gargalhar extravagante com olhos sapecas, escondido nas nuvens do choro por motivo nenhum. Sol dos amantes das mil faces, das noites longas, dos jovens cheios de desejo de liberdade, de vontade de amar, infinitamente, amar e amar... De verdade.
...Respiro fundo e tento achar essa luz que já há em mim.

Chá e espera

Uma receita boa para mentes aceleradas é chá de calmante. Mas eu sou simplesmente resistente a essas tentativas óbvias de me fazer parar. Tem gente que nasceu com a inquietação em si, com uma potente faísca pronta a explodir a qualquer momento. Não me nego fogo, apesar da irritabilidade basal em lidar o tempo todo com a possibilidade de extrapolar, não me conter, não controlar. Fico me perguntando se essa é uma escolha minha, deliberada: a de sentir extravagante. Eu de fato acho bonito quem sente, admiro quem não tem medo de se experimentar, de viver empiricamente aquilo que aflora à pele e não tem medida. Mas a verdade é que no fim das contas eu quero mesmo o equilíbrio. Ele e nada mais.

Tenho percebido que essa baboseira toda de estar imersa em mim mesma nada mais é que uma desculpa que eu me conto para evitar a vida – e assim, evitar o enfrentamento, a frustração, os sentimentos mil incontroláveis. Tenho revirado caixas fundas e empoeiradas, desenhos feios e borrões quase indecifráveis na tentativa de finalmente entrar em contato com o submerso, o que tem por um lado diminuído minhas defesas frias e enraizadas. Mas como é difícil abrir mão do conforto das coisas não remexidas... Externalizo tudo o que há em mim em forma de suspiro cansado, olhos tristes envelhecidos, vontade de dormir um pouco mais. Meu repertório está restrito e o meu coração com plaquinha de fechado para balanço. O equilíbrio é o mar, e ele está longe (não sinto nem o cheiro...!).

Essa noite, sentada sem sono e sem sossego, a vida me deu um chá de cadeira.

sábado, 2 de outubro de 2010

Elas por ...


Ela chegou ao fundo do poço, alimentou os gatos e afundou no sofá. Teve dias preenchidos por nada, e o nada era tão imenso que cegava os olhos. Ela se vestiu com um vestido preto elegante, presente de um homem mais elegante ainda, e sentiu-se no direito de usar o vestido também no desejo de pertencer – mas ele não quis tanto sentimento. Para ele a pele bastava, e sendo assim ela modulava o que estava dentro com comprimidos de farinha e vento. Voltou a fechar as janelas e não viu mais o vento. Ela era linda, mas simplesmente desaprendera a sorrir. Ela passava pelo dia, todos os dias, mas simplesmente ninguém a notava.



Ela agora já nascera desajustada, e vivera à procura da sensação de pertencimento. Ela escrevia. Tinha duas irmãs a quem chamava de queridas, tinha mil mulheres dentro de si, todas ela mesma, todas desconhecidas. Ela existia, e vivia, e sonhava com palavras para exercitar o pensamento. Ela amava o instante, e questionava o tamanho do desejo, a necessidade da angústia, a vitalidade que nascia da raiva e do encantamento. Ela amava os filhos e os outros, e sua voz foi tão intensa que ecoou nos ouvidos e corações das gentes ávidas por qualquer sentido. Um doce deleite na língua que nem era mãe.



Ela nem chegou na metade da metade. Tem olhos amendoados e cor de mel, olhos sempre úmidos, que choram, sorriem e falam. Ela fala pelos cotovelos! Seus cachos caem nos ombros, e eles carregam as dores de quem está se descobrindo gente, passível de todo o sentimento do mundo. Ela sente – sente e ponto final, sem pausas nem prerrogativas. Ela abandonou os subterfúgios e se jogou despida e intensa à vida. Ela dorme numa cama vazia e vigia a madrugada à espera de um sentido qualquer – enquanto se delicia das letras e dores de uma outra mulher. Ela segue um caminho, o mesmo caminho todos os dias, e finge acreditar que ele lhe leva até onde manda o seu destino digno. Mas o que ela quer não tem nome, e o tamanho do seu desejo é também o tamanho do medo.



Ela é óbvia e fácil de ser lida, mas convence muito pouco. Ela já teve um grito maior que todos os outros, inquieta, incômoda, mas decidiu se calar, se conter, se fechar. Doía uma dor sem tamanhos explicitar as crenças, os desejos, a vontade de vida e de luta. Doía descobrir-se, indignar-se, expor-se ao turbilhão ingrato das intempéries do mundo. Ela não sabe mais o que é, e preserva a ilusão de que assim esta fazendo parte. A verdade é que agora ela não pertence mais a coisa alguma, e na solidão do quarto escuro sofre o silencio do grito que não consegue mais sair. Ela se vestiu da superfície, e a superfície é mansa e leve feito o nada. Nada de sonho. Nada de nada.



Ela sou eu, é todas elas. Mil mulheres com faces distintas, e desejos nem tão distintos assim. É tudo mulher: inexplicável, indecifrável, sem palavras e nem necessidade delas. Numa manhã, todas de novo.



More than sorry

O jornal comprado antes mesmo da notícia do dia, sob o bater de saltos desconfortáveis no asfalto, está agora jogado sobre a mesa. Não há o que pedir quando não se sabe o quer. Cada dia amanhece e se constrói independente do meu desejo de fazer parte, e eu me abstenho mais do que me sinto capaz de suportar. A vontade de desaparecer é tão tênue que modula distímica o meu passar pelas horas contadas no relógio. A presença do jornal marca a minha presença no dia, mas fora ele eu não consigo lembrar de nada que tenha surgido do meu existir nessa tarde: não lembro mais que jeans estava usando, nem onde coloquei a caneta que rabiscou desnecessária o caderno, nem lembro dos rostos das pessoas que me ultrapassaram na calçada estreita, aceleradas, envoltas em suas bolhas eficientes e cheias de vida. Eu peço desculpas a mim mesma por simplesmente querer parar.

Fui perguntada sobre o mecanismo de produção da lágrima e tive vontade de rir da ironia que isso tudo parecia ser. “Afinal, o que motiva a lágrima se não a tristeza...?” Meu pensamento rígido e monoinsistente me fez pensar que talvez eu estivesse mesmo enxergando tudo pelo avesso dessa vez, porque não me deixou recordar das minhas lágrimas mais intensas e extravagantes, que um dia nasceram dos meus risos mais incontroláveis e cheios de mim. Onde está essa menina agora, quando eu preciso tanto dela? Sinto que estou me esvaindo em cada pedaço de água que escorre dos meus olhos, como se estivesse fugindo do que me corrói por dentro. Enquanto corre, eu silencio.

Ao lado da minha cama, aberto na página oitenta e quatro, um livro consome o que ainda há da minha força vital de fazer parte de um algo qualquer. Uma moça assim como eu, mais misteriosa que eu, tem dormido ao meu lado e me lembrado que a vida tem mesmo dessas coisas. Fora ela ninguém mais sabe. Grito ao telefone. Disfarço a vontade de ser honesta com pessoas que eu pensava que importavam pra mim. Calo-me diante das coisas que na verdade movem os meus sentimentos intensamente. Deixo pra lá, pra depois, pra nunca mais. É como um abandono consentido, um tempo, um desistir daquilo que não mais está exposto e disponível pra mim, pelo menos não nesse momento. Estou cansada. Não quero mais precisar ir atrás, com toda a minha vontade de viver misturando-se a minha vontade de enfrentamento. Se a dor é incurável, aprendi a trapaceá-la e fingir que não mais me importa. Dura. Quando a madrugada chega, aí descarrego aos milhões o gosto amargo de me sentir só.

Não quero parecer ingrata, mas estou cada vez mais relutante em relação ao que tenho descoberto sobre mim. Penso ser essa a saída do casulo, mas sinceramente não sei se estou ganhando asas. O que sinto é uma dor insuportável de acomodação, adaptação, passagem. Sei que não é pra sempre, que logo vai passar, e a minha gratidão vai toda para essa minúscula frágil certeza. Mas sinceramente não sei em que parte do caminho eu estou. Olho para os lados e sinto dentro um vazio amedrontador, preenchido de coisas que me causam ainda mais medo. A verdade é que eu fui feita de uma capacidade avassaladora de sentir, exagerada, triplicada, estratosférica. Eu sinto, mesmo no gelo, mesmo empedrada, mesmo seca. O meu sentir é a minha identidade. Dessa certeza eu não posso fugir.

O papel agora tem uma mancha da água respingada na tinta da caneta vermelha. A palavra está borrada, mas nem assim diminui o peso do sentimento que ela traz em si... E ele é infinito.