domingo, 12 de junho de 2011

Redenção

DEPOIS DO PECADO, a redenção vem ao som de uma música profana. Tirei os livros de poesia da estante. Num pedaço grande de papel, tudo que necessita de maior atenção. Deixei o álcool evaporar, assim como a faísca do fogo que ardia forte demais, e queimava. Minha inspiração ganhou tons de realidade, deixou de ser inspiração e se tornou um fato. Do fato, amanhã farei uma vitamina e tomarei até o talo.


Depois da morte pela dor do assombramento, a tentativa de renascer através da verdade. Tirei o peso do instante. Agora mordo vagarosamente a maçã, deixo escorrer um pedaço, e desfruto o meu próprio poder de degustação. Assim me é saboroso. Um segundo atrás, eu mastigava correndo na tentativa de não perder, não parar, não faltar. Mas sangrava.


Depois do depois virá a Segunda-Feira. E depois a Terça. Daí surgirá a vida, para além da tragédia caricata que eu vinha desenhando ultimamente. E surgirá o meu nome, um monte de mãos e rostos, a boa sensação de seguir adiante. Eu puxo o ar e dou o primeiro passo.

Bicho.

Dentro de mim há um bicho. Em noites assim, ele escapa e me come. Meu próprio bicho mastiga vorazmente o que resta da minha sensatez. Só me sobra o cheiro.


De olhos bem grandes, olhos negros, profundos, hipnotizantes. Abre a boca e grita suave o seu canto de sereia. Transita delicadamente sobre os espaços, ocupa todas as mesas de quatro lugares no seu discreto cruzar de pernas. No escancarar das pernas.


Meu bicho se apresenta com bilhetinhos de papel manchados de batom, solta os cabelos, puxa forte os cabelos. Olha fixamente para as bocas, e nessas horas eu nem sei o pensamento, se é que há algum - além, é claro, da pele. Não me pede licença, habita sob exuberante forma o meu vestido e os meus sapatos, se embebeda da minha taça de vinho, do whisky alheio. Definitivamente, não pede a menor permissão.


Meu bicho morde as entranhas, o pescoço, todo o ar. Se é que há intenção, sei que ela é má. Todos sabem, e gostam. Ele escorre derretido entre as brechas de sorriso barato que, atiçados, lhe dão. Se vende num jogo dominador, cheio de si, desse dia ser o fim e bastar. É o seu triunfo, a certeza de que ali ele é rei e impera. Sem necessidade de mais.


Meu bicho me toma a voz, mas não fala nada. Não diz adeus nem se justifica. Ao amanhecer, assim como entrou, me sai deixando apenas meu corpo. Sua carcaça. Moído. Descartado. Leva consigo até as memórias – e deixa apenas a dor da ressaca.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

Desfecho.

Estou cortando o umbigo. Órfã. Tristeza é precisar me conter.
Cá estou sem voz, com duas toneladas na garganta.
No fundo, no fundo, eu nunca pude ser eu.


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Acho que já sei o final.

Diário de duas adolescentes (a quatro mãos)

Estamos sentadas no sofá. Agora, nesse minuto, temos apenas 15 anos e uma vontade enorme de parar de sentir. O sentimento parece que não tem fim, não tem medida. A gente morre de medo, morre de vergonha, morre de dúvida sobre o que a gente de fato sente. Parece que nada é suficiente. Afinal, o que mais podemos querer?



A sensação de desamparo é três vezes maior que o apartamento no nono andar. Difícil lidar com tanta racionalidade alheia. O que dissemos há 30 segundos parece que se esvaiu da memória, ficou apenas a sensação inconstante da solidão. É o gosto do vinho que faz tudo rodar.



E nunca muda. Temos 15 ou 25 anos e continuamos com os mesmos medos. Irracionais. É como numa armadilha, quanto mais lutamos contra, mais nos enroscamos. Seja viajando, bem perto do mar, seja na realidade da qual tentamos inutilmente fugir numa Segunda à noite.



“Já conheço os passos dessa estrada, sei que não vai dar em nada...”



É a milésima vez. Sentimos tudo igual como se fosse a primeira. E não importa quantas vezes. Será novamente igual. Nada basta. Nem flor, nem amor, nem todo romantismo do mundo. Temos ainda muita fome de algo que não tem nome.



A música chama “Triste”. E parece que temos essa necessidade de sofrer, agora e já. Forte!Com todas as músicas possíveis. Tudo de uma vez. Temos a ilusão de que vai passar depois de tudo sofrido. E o que estamos sofrendo mesmo? Ah é, a paixão…



Honestamente, sem incômodo algum, a gente não sabe lidar com nada disso. Alguém nos deixa ligar pra Elis e perguntar como ela sentia, por favor? Pra que inventar, então, se nunca vai existir? Eu não sei brincar de gostar. Pra mim é tudo pra valer, sempre oitenta, sem oito. Nunca o tempo é suficiente. Nunca a ligação é suficiente. Nem as lágrimas. Nada mais é suficiente.



Agora já a garrafa de vinho exala no ar. Cansa sentir, mas cansa ainda mais fingir que não se sente. Daqui a cinco meses seremos algo que aparentemente nos define, mas a verdade é que não sabemos o que vamos sentir nos cinco minutos seguintes. Ninguém nos avisou isso com a antecedência necessária, com a necessidade de afeto que preenche de fato o copo, o corpo, o coração.



A gente deve para nós mesmos não mudar o que somos pelos outros. É uma obrigação com a alma, ser o honesto, ser dramático o suficiente para admitir para si mesmo o que brota de dentro. Precisa culhão. Sangue nos olhos. Ranger de dentes. E a disponibilidade para amar e chorar, rir e cair, e todo o resto.

Eu custo um copo de café forte e cinco saches de adoçante barato pra me convencer de que devo parar pra pensar. Racionalmente. Estou com um sentimento inexplicável e sem motivo. Ou pelo menos penso que estou. Partindo de uma decisão tomada ainda antes de levantar resolvi não alimentar o meu lado carente e sanguessuga. Pus uma, duas, três roupas diferentes, desci degraus incontáveis no escuro, subi num ônibus, andei prum lugar que pertencia só a mim. Eu deveria me bastar.


De repente aquelas canções velhas de todos os dias, na mesma voz de todos os anos (desde os cinco de idade), ganharam um sentido que me fez sofrer. Eu sabia a letra de cor, mas não sabia a intensidade das palavras - elas, poderosas palavras, que potencializam o sentimento já potente por definição. Meu castelo de areia está sendo levado pela força irrevogável e honesta do mar. Inevitável colapso, calmo e bruto, que inunda até a mim...


Se hoje eu pudesse guardar uma coisa que me é óbvia, guardaria o gosto desse café. O calor. O aroma. O meu mundo inteiro, que parece intocável dentro desse desfrute indecente do amargo açucarado. Esqueço de tantas conclusões já exaustivamente tiradas que permito apenas um riso discreto e tímido para a menina no espelho. Acho que preciso enxergar mais o que está dentro, valorizar a imensidão do que há em mim... Uma conquista pessoal de pequenos mimos, de carinhos constrangidos, de suavidade no olhar. Eu preciso me desejar. E nessa, enxugar meu próprio pranto, me cantar canções no ouvido, respeitar minha vontade de estar só.


Porque eu sou tudo o que tenho, primordialmente e sempre.

Hoje

Todos os dias, invariavelmente, a gente revive. É o pressuposto dos dias em que a gente respira. Hoje passei por uma senhora com olhos cansados, que praticamente não enxergavam mais. Acho que os olhos dela simplesmente se aposentaram, falaram que era tempo de evitar ver tanta coisa mais. Partimos de um sorriso cúmplice e tímido, começamos a conversar, primeiro sobre a demora, depois sobre a paciência. Há 30 anos ela havia trabalhado naquele andar de hospital, hoje não andava sem bengalas. Eu, que tinha usado os meus olhos a noite inteira pra explodir o que estava dentro de mim, agora olhei atentamente aquela voz que falava com o peso de todo o necessário saber do mundo. Ali, ela era a existência. Um ônibus veio e a levou, como carregada pelo vento. Antes de sair de casa eu havia pedido baixinho que a vida me ensinasse alguma coisa, e nos cinco minutos em que estava andando em busca do sol, a vida se fez com noventa e poucos anos, mais real que nunca.


...


Agora observo o caminhar das pessoas bem vestidas. Estou sentada com o computador à minha frente, que me esconde da indiscreta curiosidade que me impõe observar a vida alheia. Não sei nem se as pessoas se importam com o fato de estarem sendo investigadas. No fundo, no fundo, estou atrás de emoção. O que me interessa mesmo é a mão na outra mão, o bocejo da moça atrás do balcão, as pernas cruzadas do homem só, olhando pro nada. Cabelos brancos que abraçam cabelos brancos. E por aí vai. Entre chaves balançando dentro dos bolsos, guarda-chuvas pendurados nos braços, cachecóis enforcando os pescoços, acho que ninguém me vê. As florzinhas bem pequenas na blusa rosa disfarça a angústia lamacenta e negra que mora em mim. Não aparento ter envelhecido dez anos nessa última madrugada. Mas sinto como se de repente a dimensão rígida e extravagante da minha dor fosse perdendo perna, perdendo força uma vez que entro silenciosamente em contato com toda essa sutil emoção percebida ambulante pelo mundo. O homem ao lado, misterioso em seu chapéu estilo Panamá, me provoca a pensar que há uma imensidão ainda intocável logo perto de mim. É bem assim que deixo de existir como tudo e só.


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