domingo, 22 de abril de 2012

Pela ausência de voz.

Deixe-me assim, levada pela inércia, água correndo para buracos fundos escuros. Sem cheiro. Sem cor. Deixe-me quieta nessa bolha de desatenção, onde espia o medo de coisa qualquer, perspectiva de horas em movimento descompassado. Deixe-me parada.
Deixe-me sem notícia, sem memória, sem lembrança. Sem promessa de carinho, nem de amanhecer, nem de amanhã. Quero ficar em silêncio, pois não há beleza na primavera de hoje. Chove um bocadinho, um gole ralo de café, cheio de lágrima, a voz de sabedoria. A voz de um homem que ri, mesmo tendo ciência das dores. Porque acredita. 
Deixe-me estática, meditando pensamentos que não importam mais. Abstenha de opinião, crua. Paz disfarçada de olhos que não querem ver. Deixe-me opaca. Deixe-me secar o que já não escorre mais. Deixe-me debaixo dágua, sem respirar.
Não olhe para mim, nem pronuncie meu nome, porque não há nada a ser exposto. Abra cuidadosamente a caixinha de segredos, retire o que lhe interessa. Deixe-me sem vaidade, pois já não resta propósito algum. Deixe-me cobtemplar apenas a impossibilidade. De longe. 
Deixe-me sem sentir, injeção de anestesia. Deixe-me soluçar em silêncio. Deixe-me viver, por demanda urgente de agr, por estase.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Eu sou o fino tecido que recobre todos os passos do horizonte. Veladamente, fazendo de conta que não há parte ruim. Enganando o próprio destino.
Eu sou a ausência vestida de branco, pálido, turvo. A sequência      de imagens sem voz, o paladar queimado de um café muito quente. Sou aquilo que o forte pegou para escravo. A sentença falha do amanhã, obediência sem olhos e sem roupa.
Eu sou a retidão, a congregação e a paisagem. Tudo junto, misturado. Um terreno farto de não sei. Sou o despedaçar de uma parte que ainda está no anonimato, por entre dedos curtos e falhos - e assim permanecerei. Sou a fadiga e o pão de ló.
Eu sou quem está ao lado do viaduto, à margem de, quem segura as horas com os dentes, as lágrimas com as sobras. Sou o espirro escandaloso às convenções. O que está tão longe que não se enxerga, tão transparente que não se vê. Sou a menor ilha do deserto sem água.
Eu sou a película de chuva retida na janela do quarto, imóvel, existindo só por existir. Sou o pesar dos pesares. Sou o suave veneno que escorre da boca da mágoa. Sou a irmã gêmea da mágoa. Sou o perdão e o propósito.
Sou, eu mesma. Sou e sinto. 

 
Não vejo a cor do dia, a flor do dia, a flor no peito. Daí eu páro por cinco minutos, é o tempo inteiro que tenho de sobra, o quanto eu vivo da vida. Venho pra casa só pra chorar, o João de Deus nem sabe. Meu nome é Maria das Dores, miserável misericórdia essa que prometeram antes deu tirar os sapatos e ajoelhar pra rezar. Ser infeliz não é sina, é somente silêncio. Brinco de adivinhar o dono da posse, quem é esse que me espera na cama todas as noites, quando eu não vou. Eu fecho e abro os olhos, o ponto-e-vírgulas dos dias sem suspiro algum. Nesses sei com convicção que não há ninguém, e me falta o ar.
Tive um filho de parto normal, filho de outra mãe que agora ocupa os meus braços. O rosto ri a dor no corpo, o peso dos dias sem fim. Não há trégua, nem cavalo, só um cachorrinho bem magro, um menino denutrido e essa gente toda que não sabe ler, a não ser o Santinho. Esse mesmo, do pau oco. Serelepe. Pros pecados, e pro que há a mais.
Não vejo nem o restinho do fio do dia, que amanheceu e foi-se embora, passou pelo quarto do lado nas pontas dos pés, e eu nem cheguei a dizer que estava com saudades. O tempo é curto prum cabelo tão grande, não dou conta de trançar, vou pra rua desse jeito, despenteada, porque gritam meu nome com voz de choro, de fome, de desespero. De verdade e mentira juntos, mas eu acredito em tudo, tudinho mesmo, porque meus joelhos agora parecem estar sobre milhos.
A minha prece é prum raio ensolarado batendo no rosto, apesar dessas mãos fracas de agora. Pra onde caiba aconchego e esperança, dia e noite, vida e morte, como Deus quiser, como há de ser. Mas quero que transborde de afeto. Sem que me falte o essencial diante dos olhos. O óbvio. 
Me chamo Maria das Dores, filha da Severina, filha da sorte de ter sido feita eu.