sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

Respiro

Amanhece novamente nos lugares onde sopra a brisa doce do mar. Um silêncio imperial reina sobre os olhos ainda fechados que sussurram uma oração. De pernas cruzadas formando uma borboleta, a sensação de que o mundo cabe inteiro dentro dos pulmões, e que a vida tem todo o tempo do mundo para simplesmente respirar.

Ainda é noite ao som de Billie Holiday, dessa vez sem nenhuma taça de vinho ou outra voz. Sem nenhuma pretensão. Tenho vontade de apagar as luzes e balançar os pés, pra sempre, ao ritmo desse amor anos 30.

Pequenos prazeres adocicados enchem meus sentidos duma promessa de deleite, e eu aguardo ao tique-taquear das onze horas, aquele quando tudo se transforma em poesia. Sinto falta das madrugadas regadas a música, discursos apaixonados, excitação e epifania. Romântica em meio a olhos puxados por um lápis berinjela, última moda, último tom nesse rosto cheio de vergonha.

Nessas quatro paredes que se tocam e quase viram uma só há espaço suficiente para um espelho e uma dança. O corpo, maior do que devia, desafiadoramente ocupa quase nada dos meros metros quadrados, e entre o nada e o tudo desliza em graça e forma o que surge do impulso de se deixar ir. Em frente ao espelho meu corpo sonha e vive.

Amanhece novamente aqui dentro, sob a promessa de um lugar onde o horizonte é o limite frouxo de tudo o que se pode percorrer. O rigor derretido das estruturas imutáveis, dos pensamentos imutáveis, agora dá lugar a uma névoa fina e tímida de inquietação, que ganha força, ganha vida e se torna verdade. Daqui a dois, três dias, tudo nascerá de novo e se fará real, mais intenso que nunca! Meus pés estão ávidos e já querem tocar o chão.

...

Há um coração em mim e ele fica ali, logo em cima, perto do mar.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Há.

O amor existe e se esconde trapaceiro nas minhas mangas, enganando primordialmente a mim mesma. O amor tem um sabor que agora eu amargo, mas que já foi doce e escorreu pelo canto da minha boca. O amor tem cores brilhantes, marcas discretas e inesperadas nas pedras dos meus dias, dias esses preenchidos pelo granito imutável da rotina preto-e-branca. Sei que estou daltônica. O amor não tem sílaba nem meia vontade – ele existe como unidade, como coisa que já nasce destinada a morrer. Não o encontro dentro do armário da cozinha, nem na gaveta das calcinhas, nem na cômoda ao lado do abajur. Não está mais gravado no espelho cheio de vapor do chuveiro quente, nem na toalha de mesa manchada com o gole do vinho não tomado. O amor se esvaiu das minhas paredes mornas, das antigas curvas do meu corpo, das antigas palavras choradas na vitrola. Assim como entrou, um dia saiu, e deixou no lugar nada mais.

O amor tem voz rouca, olhos semicerrados e um ar melancólico. Tem vontade de carne e perfume barato. Enganador. O amor não tem escrúpulos, respeita apenas a regra que impõe a si mesmo de ser visceral. Sorri com ar de satisfação, parasita de minha força vital – me toma inteira e quando eu vejo, estou desnutrida, consumida, entregue e sem paz. Morde o meu pescoço e bebe tudo o que há em mim.

O amor amanhece com sua umidez característica, se espalha pelas frestas de qualquer descuido das cortinas, das muralhas, das defesas mil. Dá vertigem, fadiga, alucinação. O amor rasteja pelas cadeiras em que sento, enquanto espera o momento certo para amarrar de vez os meus pés e me deixar imóvel. Numa esquina, sobe pela minha espinha e vira um ponto de luz – o qual eu, sem nenhum poder de decisão, simplesmente sigo.

O amor tem nariz de palhaço, traz um outro consigo e prende na minha cara. Lança fogos de artifício que explodem dentro do peito, brilham nos olhos e viram gargalhada. O amor dispensa qualquer conversa, ele se instala mudo, e no seu silêncio preenche todo o espaço. Dói latente, escorre, sangra, até curar – e depois volta com outro nome, outro número de telefone. O amor é o fato intolerável da vida sem o qual a vida não existe.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Mi fá Sol



Não chega ainda a ser doce a sensação do despertar, mas tem um cheiro bom. Em agradecimento à vida hoje me comprei um par de lírios tímidos, mas potentes na capacidade de preencher o ambiente com o sabor de uma boa nova no ar. Decidi que não leria alheia o jornal da manhã e simplesmente faria parte do dia. Vestida da minha cara lavada mais que três vezes para tomar coragem, lancei-me para além das muralhas em direção à... Luz!

Aos poucos o desconforto sem nome vai dando lugar a uma sensação mais cômoda de rotina, e eu tento exigir menos de mim. Meu telefone toca, a caixinha na tela do computador pisca mostrando que há coisas a serem vistas, o bloquinho de notas ganha tinta de caneta e um asterisco grande se destaca no canto superior do papel cor de giz– são os sinais de que aos poucos eu estou de volta à ativa, de volta ao caminho diário, ao enfrentamento e deliciamento do cotidiano. Aos poucos, tímida como os lírios, estou voltando a mim.
Entro em casa mais tarde do que gostaria, encho duas garrafas de água e espero elas gelar.
Há uma bailarina cubana, uma morena com vestido de flores e uma baiana de seios fartos que dançam em cima da minha mesa da sala. Elas me olham enquanto eu dobro as pernas vestida em um moletom velhinho e largo, apago as luzes e ligo a música, ao mesmo tempo em que penso sobre o que preenche o meu viver, o meu substrato. É meio bobo revirar todas essas coisas novamente, tão bobo quanto inevitável. Às vezes eu queria fechar os olhos e dormir, sem precisar exercitar tais pensamentos – mas é pretensão demais achar que de um dia pro outro eu vou afastar de mim aquilo que é intrinsecamente meu, e que me causa tanto gozo quanto desprazer. Essa sou eu, neurótica, explícita, infinita e miúda. Assim.
Enquanto busco um sol lá fora na madrugada fria e interminável, vou me dando conta de que não faz tanto mal assim querer tocar aquilo que não foi feito pra ser entendido. Faz parte do processo de aceitação das coisas como elas se dão, mas mais que isso, faz parte do meu processo de crescimento, do meu entendimento de que é passível não entender e ainda assim ser grande. Independente de quem se é, a verdade é que todo mundo tem um potencial energético infindável dentro si, um sol que é só seu e brilha à medida que se deixa brilhar.
Meu sol é o sol de touro, carente e carinhoso. É o sol das auroras das manhãs mornas, da esperança no poder arrebatador do recomeço. O meu sol é o da poesia oculta nas pequenas maravilhas extraordinárias que habitam o dia-a-dia comum de todo mundo, e me causam tamanho encantamento. É o sol do gargalhar extravagante com olhos sapecas, escondido nas nuvens do choro por motivo nenhum. Sol dos amantes das mil faces, das noites longas, dos jovens cheios de desejo de liberdade, de vontade de amar, infinitamente, amar e amar... De verdade.
...Respiro fundo e tento achar essa luz que já há em mim.

Chá e espera

Uma receita boa para mentes aceleradas é chá de calmante. Mas eu sou simplesmente resistente a essas tentativas óbvias de me fazer parar. Tem gente que nasceu com a inquietação em si, com uma potente faísca pronta a explodir a qualquer momento. Não me nego fogo, apesar da irritabilidade basal em lidar o tempo todo com a possibilidade de extrapolar, não me conter, não controlar. Fico me perguntando se essa é uma escolha minha, deliberada: a de sentir extravagante. Eu de fato acho bonito quem sente, admiro quem não tem medo de se experimentar, de viver empiricamente aquilo que aflora à pele e não tem medida. Mas a verdade é que no fim das contas eu quero mesmo o equilíbrio. Ele e nada mais.

Tenho percebido que essa baboseira toda de estar imersa em mim mesma nada mais é que uma desculpa que eu me conto para evitar a vida – e assim, evitar o enfrentamento, a frustração, os sentimentos mil incontroláveis. Tenho revirado caixas fundas e empoeiradas, desenhos feios e borrões quase indecifráveis na tentativa de finalmente entrar em contato com o submerso, o que tem por um lado diminuído minhas defesas frias e enraizadas. Mas como é difícil abrir mão do conforto das coisas não remexidas... Externalizo tudo o que há em mim em forma de suspiro cansado, olhos tristes envelhecidos, vontade de dormir um pouco mais. Meu repertório está restrito e o meu coração com plaquinha de fechado para balanço. O equilíbrio é o mar, e ele está longe (não sinto nem o cheiro...!).

Essa noite, sentada sem sono e sem sossego, a vida me deu um chá de cadeira.

sábado, 2 de outubro de 2010

Elas por ...


Ela chegou ao fundo do poço, alimentou os gatos e afundou no sofá. Teve dias preenchidos por nada, e o nada era tão imenso que cegava os olhos. Ela se vestiu com um vestido preto elegante, presente de um homem mais elegante ainda, e sentiu-se no direito de usar o vestido também no desejo de pertencer – mas ele não quis tanto sentimento. Para ele a pele bastava, e sendo assim ela modulava o que estava dentro com comprimidos de farinha e vento. Voltou a fechar as janelas e não viu mais o vento. Ela era linda, mas simplesmente desaprendera a sorrir. Ela passava pelo dia, todos os dias, mas simplesmente ninguém a notava.



Ela agora já nascera desajustada, e vivera à procura da sensação de pertencimento. Ela escrevia. Tinha duas irmãs a quem chamava de queridas, tinha mil mulheres dentro de si, todas ela mesma, todas desconhecidas. Ela existia, e vivia, e sonhava com palavras para exercitar o pensamento. Ela amava o instante, e questionava o tamanho do desejo, a necessidade da angústia, a vitalidade que nascia da raiva e do encantamento. Ela amava os filhos e os outros, e sua voz foi tão intensa que ecoou nos ouvidos e corações das gentes ávidas por qualquer sentido. Um doce deleite na língua que nem era mãe.



Ela nem chegou na metade da metade. Tem olhos amendoados e cor de mel, olhos sempre úmidos, que choram, sorriem e falam. Ela fala pelos cotovelos! Seus cachos caem nos ombros, e eles carregam as dores de quem está se descobrindo gente, passível de todo o sentimento do mundo. Ela sente – sente e ponto final, sem pausas nem prerrogativas. Ela abandonou os subterfúgios e se jogou despida e intensa à vida. Ela dorme numa cama vazia e vigia a madrugada à espera de um sentido qualquer – enquanto se delicia das letras e dores de uma outra mulher. Ela segue um caminho, o mesmo caminho todos os dias, e finge acreditar que ele lhe leva até onde manda o seu destino digno. Mas o que ela quer não tem nome, e o tamanho do seu desejo é também o tamanho do medo.



Ela é óbvia e fácil de ser lida, mas convence muito pouco. Ela já teve um grito maior que todos os outros, inquieta, incômoda, mas decidiu se calar, se conter, se fechar. Doía uma dor sem tamanhos explicitar as crenças, os desejos, a vontade de vida e de luta. Doía descobrir-se, indignar-se, expor-se ao turbilhão ingrato das intempéries do mundo. Ela não sabe mais o que é, e preserva a ilusão de que assim esta fazendo parte. A verdade é que agora ela não pertence mais a coisa alguma, e na solidão do quarto escuro sofre o silencio do grito que não consegue mais sair. Ela se vestiu da superfície, e a superfície é mansa e leve feito o nada. Nada de sonho. Nada de nada.



Ela sou eu, é todas elas. Mil mulheres com faces distintas, e desejos nem tão distintos assim. É tudo mulher: inexplicável, indecifrável, sem palavras e nem necessidade delas. Numa manhã, todas de novo.



More than sorry

O jornal comprado antes mesmo da notícia do dia, sob o bater de saltos desconfortáveis no asfalto, está agora jogado sobre a mesa. Não há o que pedir quando não se sabe o quer. Cada dia amanhece e se constrói independente do meu desejo de fazer parte, e eu me abstenho mais do que me sinto capaz de suportar. A vontade de desaparecer é tão tênue que modula distímica o meu passar pelas horas contadas no relógio. A presença do jornal marca a minha presença no dia, mas fora ele eu não consigo lembrar de nada que tenha surgido do meu existir nessa tarde: não lembro mais que jeans estava usando, nem onde coloquei a caneta que rabiscou desnecessária o caderno, nem lembro dos rostos das pessoas que me ultrapassaram na calçada estreita, aceleradas, envoltas em suas bolhas eficientes e cheias de vida. Eu peço desculpas a mim mesma por simplesmente querer parar.

Fui perguntada sobre o mecanismo de produção da lágrima e tive vontade de rir da ironia que isso tudo parecia ser. “Afinal, o que motiva a lágrima se não a tristeza...?” Meu pensamento rígido e monoinsistente me fez pensar que talvez eu estivesse mesmo enxergando tudo pelo avesso dessa vez, porque não me deixou recordar das minhas lágrimas mais intensas e extravagantes, que um dia nasceram dos meus risos mais incontroláveis e cheios de mim. Onde está essa menina agora, quando eu preciso tanto dela? Sinto que estou me esvaindo em cada pedaço de água que escorre dos meus olhos, como se estivesse fugindo do que me corrói por dentro. Enquanto corre, eu silencio.

Ao lado da minha cama, aberto na página oitenta e quatro, um livro consome o que ainda há da minha força vital de fazer parte de um algo qualquer. Uma moça assim como eu, mais misteriosa que eu, tem dormido ao meu lado e me lembrado que a vida tem mesmo dessas coisas. Fora ela ninguém mais sabe. Grito ao telefone. Disfarço a vontade de ser honesta com pessoas que eu pensava que importavam pra mim. Calo-me diante das coisas que na verdade movem os meus sentimentos intensamente. Deixo pra lá, pra depois, pra nunca mais. É como um abandono consentido, um tempo, um desistir daquilo que não mais está exposto e disponível pra mim, pelo menos não nesse momento. Estou cansada. Não quero mais precisar ir atrás, com toda a minha vontade de viver misturando-se a minha vontade de enfrentamento. Se a dor é incurável, aprendi a trapaceá-la e fingir que não mais me importa. Dura. Quando a madrugada chega, aí descarrego aos milhões o gosto amargo de me sentir só.

Não quero parecer ingrata, mas estou cada vez mais relutante em relação ao que tenho descoberto sobre mim. Penso ser essa a saída do casulo, mas sinceramente não sei se estou ganhando asas. O que sinto é uma dor insuportável de acomodação, adaptação, passagem. Sei que não é pra sempre, que logo vai passar, e a minha gratidão vai toda para essa minúscula frágil certeza. Mas sinceramente não sei em que parte do caminho eu estou. Olho para os lados e sinto dentro um vazio amedrontador, preenchido de coisas que me causam ainda mais medo. A verdade é que eu fui feita de uma capacidade avassaladora de sentir, exagerada, triplicada, estratosférica. Eu sinto, mesmo no gelo, mesmo empedrada, mesmo seca. O meu sentir é a minha identidade. Dessa certeza eu não posso fugir.

O papel agora tem uma mancha da água respingada na tinta da caneta vermelha. A palavra está borrada, mas nem assim diminui o peso do sentimento que ela traz em si... E ele é infinito.

sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Luto.

Eu sou feita de carne, osso e sentimento. De riso, choro e poesia. Meu instante é a minha vida inteira e condensa tudo o que explode dentro de mim. Sempre achei que essa fosse a minha sina, carregar no peito dor e amor, a imensidão da emoção que cada segundo carrega em si. Mas agora eu cansei. Decidi que por um tempo não quero mais sentir. Decidi que de agora em diante minhas escolhas vão ser cautelosas, pouco arriscadas, pouco exageradas, pouco vibrantes, pouco minhas. Se gostar de viver dói, me retiro deliberadamente, reclusa na tentativa de me curar da dor. Estou latejando e o meu coração já não suporta mais o peso do mundo.

sábado, 28 de agosto de 2010

Eu, canção.

Estou mais em mim que nunca. Depois de ontem percebi que o furacão de dentro repercute mundo afora, e a minha fé tem que vir do peito, da crença real, abençoada e forte, em mim mesma. Ultrapassei a fase do embotamento, e por fim tornei-me capaz de sentir sem reservas, sem precauções – a divina comédia das minhas próprias muralhas. Mas apesar do encantamento momentâneo pelo escancarar das janelas, ainda preciso percorrer uma ponte infindável até alcançar o outro, honesta e entregue, com os dois pés do lado de lá e a cara a bater. Ofertada, com rosas, perfume e mel. Sim, eu quero ser, quero ver no que dá.

Fecho os olhos e deixo ser, sem nem mais saber ao certo o motivo da batedeira no peito. Eu misturo tudo, vou empilhando as sensações, transbordando-as uma a uma, mas agora, depois de muito hesitar, finalmente aprendi a enxergar a leveza nesse meu jeito estabanado de ser. Quis ser senhora do tempo, do destino, e acabei refém dos meus desejos íntimos e pouco racionais. Sou tomada por trovoadas mesmo em dias quentes, maldigo a falta de trincos nas portas, e quando vejo, já fui. Repetitiva, desarmônica. Fico triste, derrubo uma lágrima e mais outra, desisto da vida por cinco minutos eternos. Ainda bem que cantar faz bem. Meu sofrimento é auto-limitado, porque ele encontra a barreira melódica na minha vontade de ser levada pelo ritmo. Me assusto ao perceber que, apesar de tudo, eu quero estar aqui, onde estou, sinfônica, desafinada. Essa é a minha voz. Tenho uma orquestra inteira dentro de mim, com os mais variados sons ávidos por sair no tom mais alto que existir. Eu não caibo e extrapolo. Me espalho, me lanço leve ao mar...“ A vida é oferenda...”.

Tudo brota de mim, a sensação falha e incompetente, o cansaço maior que duas vezes o peso do corpo, a vontade de não querer mais isso da vida. De repente me falta fôlego, me falta o sentido, me falta razão. Estou presa à inércia surda do vácuo, não há nada além da emoção fria de desapontamento. Sou eu comigo mesma – e do outro lado está o mundo, duro, com olhos vermelhos e dentes rangidos à mostra. Eu encolho.

São essas coisas diárias, estáticas e intransigentes, que me fazem perder a paixão. Alguém me diz - como se vive sem paixão? Eu preciso estar apaixonada, preciso acreditar verdadeiramente naquilo que faço, ter brilho nos olhos, sangue nos olhos! Eu preciso do arrepio, da excitação, da poesia - mesmo na dor. Sem isso sou passarinho na gaiola e caibo num envelopinho de papel.

Hoje eu não sei exatamente o que eu quero. Sei apenas que amo a idéia lispectoriana de liberdade, a minha idéia boba e romântica de fazer a diferença, a idéia maior de ser feliz, simplesmente feliz. Mas o que tenho vivido é uma reprodução cega e vazia dos dias de ontem, um transitar moribundo pelos lugares onde me mandaram estar. Me aproprio pouco dos passos que eu mesma dou, impaciente, pálida, murcha. Se me perguntarem, eu não sei responder.

Ainda lembro daquilo que um dia me impulsionou até aqui. Meu combustível é a gente desse mundo afora, as histórias de vida de cada pessoa, a beleza oculta nas faces duras e calejadas, nos pés, nas mãos. É disso que eu gosto, de sentir, de estar junto. Gosto de me emocionar com relatos entrecortados de um pedaço discreto da imensidão de uma vida qualquer, nos 15 minutos que, sim, têm impacto tsunâmico sobre mim. Eu gosto do encontro e da verdade no olho do outro.

Seja lá o que eu esteja vivenciando agora, sinto ainda latente aqui dentro os meus sonhos da época em que sonhar era real. Por enquanto, eu espero - agradecida pela sensação boa de que o dia acabou e eu posso tirar os sapatos.

Eu quero todos ao mesmo tempo. Insaciável que sou e cansada da vida de não ter ninguém, decido que por essa noite, só essa, eu sou o mundo. O agora é a eternidade, e eu sou infinita, inteira, completa. Tudo é lucro. Nada de lágrimas derramadas em pedacinhos dobrados de papel. O que eu quero mesmo é explodir, dançar até enlouquecer os olhos já loucos de desejo. Um sotaque em outra língua, a boca clamando por outra boca, ou por um pedaço da letra provocante do samba da nega do morro. Eu sou várias, sou todas elas, pra todos os gostos - e nem me importo com a minha cara cínica. O meu perfume doce, truque antigo, intencionalmente colocado para que se espalhasse no ar. Uma mão puxa forte os meus cabelos e rouba o que há do meu cheiro. Eu fecho os olhos e deixo que leve todo. Habita agora o meu pescoço, e não me larga mesmo quando eu corro, querendo outra coisa qualquer. Pulso, o rebolar na batida, grudada num corpo que se acomoda ao meu. Sem identidade, só pele.

Estou numa cidadezinha com nome estranho, numa salinha escondida de um hotel, em cima da mesa de casa, grudada em uma grade da praça onde pisca uma luz ao fundo. Estou num bequinho duvidoso, no bar rodeado de gente dançando, no quarto do apartamento dele. Hoje, um palco só pra mim. Estou no mundo. Eu sou o mundo.

Estou com medo de escrever. As palavras hesitam em sair e me questionam se vale a pena tirá-las de dentro de mim. Permaneço inteira mesmo despedaçada, e é isso que me mantém de pé, insistente – o meu senso de mundo particular maior que todo o resto.

Em meio ao desleixo, à vontade de desabitar essa pele, de transfundir os pensamentos endurecidos e arraigados, reconheço uma defensora loba tomar conta de mim, tão firme e intensa que me faz criar garras. A verdade é que eu banco minhas sensações, estou aqui, com unhas e dentes, certa do que sou. Como uma mãe defendendo sua prole, me coloco à frente escancarada, afastando pra longe aquilo que me faz doer. É noite e eu acabo de fechar as portas. Tenho sofá, cama e coração vazios, mas ainda assim, eu tenho a mim. Finalmente descobri que posso estabelecer um pacto comigo mesma - apesar das desavenças pessoais, das frustrações gritantes, do medo de gelar a espinha. Não quero me curar nunca mais da sensação viciante e entorpecente de me bastar e me querer, mais que tudo no mundo.

Hoje estou concha do mar.

Qual é? Tenho usado meias palavras enfeitadas, mas o que eu quero na verdade gritar é que eu tenho raiva! Os 65 % são meus, e me bastam. Abri as portas pra deixar sair – que o vento leve e eu não precise mais ser inundada da lembrança pelo cheiro toda vez que entrar por elas. Afinal, isso aqui é meu – e do que há em mim eu não abro mão.

Uma voz lá dentro me pede calma, me faz contar até 10, depois até 20, depois o alfabeto de trás pra frente. Já na metade eu me perco, e perco também o motivo que me fez explodir. Mas dessa vez não quero mais me comprar um chocalho – nada de distração, eu quero sentir inteiro, cuspir pra fora e virar do avesso o me vem derretendo por dentro. Sou exagerada, tenho poucas medidas de contenção, e é por isso mesmo que dessa vez eu tou pouco me lixando! Eu tenho o direito de sentir!!! (,,,E todos os palavrões pouco reproduzíveis aqui).

Pronto, agora estou névoa, leve e livre, pronta para outra!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Ouriço-do-mar

Estou exausta. A energia se esvai de mim como fiapos de carpetes velhos. Tenho que comprar uma caneta – há três dias acordo com a incumbência de comprar uma caneta, mas meu desejo é dormir um pouco mais. Faz tanto frio que eu tenho medo de me mexer, e o calor do meu peito, por si só, não é capaz de aquecer tudo o que está exposto. Parei de viver para viver outra coisa – impressa tão ditatorialmente a ponto de me fazer enfrentá-la mesmo sem vontade, sem tesão nem expectativa. Intimidada, flutuo de um canto a outro sem nem saber como cheguei daqui pra lá. Meu pensamento-liquidificador apita avisos que envolvem canetas e ligações não atendidas, e eu desejo simplesmente não precisar decidir.

Essa noite sonhei com um lugar onde eu estava só, e finalmente senti que meus músculos pararam de me mostrar o quanto eles estavam bravos comigo – mas o sonho (ou o sono) durou cinco minutos, e já logo era um dia pronto pra tudo de novo. Agora relutante, automatizo passadas duras e tento afastar qualquer resquício de lembrança boa que se insinua atraente ao meu redor. Nada adianta, meu riso está escondido e eu aceito, por fim, as nuvens cinzas e o humor preto-e-branco. Qualquer coisa vai ficar pra depois.

Uma idéia fixa e neurótica na cabeça, histeria podada por um sermão sem fundamento, brigas com relacionamentos diários insustentáveis, grito da boca pra dentro, ausência de canção. Eu já sei o que está acontecendo. Alguém quer falar comigo, por favor? Meia hora depois, e eu estou no mesmo lugar. Outra manhã, e o mesmo lugar.

Estou ouriço-do-mar. Estou ouriço e espeto.

domingo, 15 de agosto de 2010

Brisa fria e leve, luzes mil numa avenida que não tem fim. Trilha sonora e o pensamento longe, a decisão de caminhar em meio à gente, experimentando a vida de dentro passar pelo mundo de fora, lúcido e acelerado. Uma estrela única, solitária, ilumina o céu quase inteiro, e eu sigo tentando identificar o que há por trás de cada rosto que surge e desaparece, e caminha em direção oposta a minha. Uma menina com cabelos pretos e ar misterioso escolhe três ou quatro filmes pra assistir mais tarde em casa. Nenhum convite. Uma banca montada com brincos de todas as cores do arco-íris atrai a atenção de uma pessoa ou outra. Um homem dorme no chão, envolto em papelões úmidos e chega a ser confundido com a paisagem. Essa é a cidade grande, prometida. Ainda estou indecisa quanto a uma coisa, qualquer coisa, todas as mínimas coisas evidentes a meu respeito. Olho pra luz que pisca e dita o fluxo ritmado dos automóveis, em suas filas grandes e intermináveis. Está verde, e eu acho que é pra mim, minha nova verdade. Sigo em frente, disposta a me deixar ser levada pelo vento, pela curiosa sensação de simplesmente ir.

O moço com braços bonitos deixa o skate cair por uma ladeira e quando percebe já é tarde demais. Uma vez na ladeira, tem que chegar lá em baixo, pra depois voltar e continuar a correr, mais rápido que nunca. Um vestido com listas grossas cor de amora passa e deixa o vento levá-lo para dançar. Pares de sapatos cheios de estilo tropeçam uns nos outros. Duas mãos dadas me lembram que têm coisas que eu quero, sim, mentira minha fingir que não. Paro, porque agora eu não posso passar, separada por faixas brancas riscadas no chão do rapaz com cara de negócios e mãos cheias de papéis. Respiro fundo e olho acima para as construções sem fim. Me sinto pequena, mas também infinita num espaço particularmente menor e mais denso que o projetado aos meus olhos. Qual será a distância de lá até aquilo que me fará feliz?

Decido que quero tomar um café sentada numa poltrona grande e confortável, que me afunda naqueles tais pensamentos sem nenhuma razão. Insuportável funcionamento acelerado da mente. Hipnotizada e disrítmica tento entender aquilo que ultrapassa qualquer entendimento, enquanto mareio os olhos cansados... Sinto o gosto marcado e denso do grão moído, amargo a sensação teimosa do meu apelo a mim mesma. Mas por fim, sou vencida pela brisa doce e fria da avenida grande, que me toma outra vez e me mostra que há pulso quente e forte emergindo de mim.

terça-feira, 27 de julho de 2010

Revelações

Meus dias têm quarenta e oito horas, duas faces com batons diferentes. Estou cindida inteira, intensa em duas de mim teimosamente manifestas – ora ao sol, ora à lua. Transito entre os pólos camuflada do meu desejo, antípoda que sou e refém do que está submerso e eu não sei. Mas eu afloro, potencializando papeis intransponíveis e absolutos na busca de coisas que por vezes não representam exatamente tudo que há aqui. Sou o contrário de mim mesma, habito cordialmente esse corpo cheio de pernas que cambaleiam em volta da dúvida sobre o que seguir. Me perco a cada esquina, e esporadicamente experimento a sensação do fôlego do entardecer, na possibilidade de algo novo, fresco, úmido. Me fluidifico e vou.

Deixo os pensamentos não reveláveis permearem o lugar que lhes pertence, o dedo sobre a boca confirmando que por ali eles não saem. Sem palavras possíveis, despeço-me com o que me resta de “expositível”, ainda pouco penetrado de culpa e medo. Quando durmo, já aí acordo, e sendo outra inicio um outro capítulo com língua, cílios, mel e poema.

Sede(de)sentir

Estamos todos sedentos por sentimento, por mais que finjamos que não. Por isso compramos bilhetes com acesso a histórias de amor e nos inundamos em finais felizes clichês pra aquecer o coração de esperança. Por essa e toda a vontade de sentir é que rimos ao ouvir noticiada uma loucura inusitada de alguém extravasando emoção, e tomamos como extraordinário qualquer feito cotidiano que extrapole a macicez oca do comportamento diário embotado, calejado, infeliz. Desejamos ir ao cinema em tardes de Quarta-Feira, com sanduíches enormes e lenços de papel; lemos o mesmo best-seller, nos deixando surpreender com o desenrolar previsível, importado de outro mundo que nada tem a ver com o nosso; pagamos caro por qualquer insight que nos faça crer que não estamos vazios por dentro, deitados num divã de frente a um quadro com cores cruas. A verdade é que tudo isso, comercializável ou não em sua essência, se torna alimento do qual somos consumidores insaciáveis, secos que estamos da fonte de nós mesmos.

Li um dia desses que começos são sempre felizes. Todo começo é assim, por definição, feliz – e se você é teimoso o suficiente, faz com que os finais também o sejam. Não sei se acredito exatamente nisso enquanto vivência isenta de frustração, arrependimento e dor, mas de certo modo concordo que temos uma capacidade flexível de nos lembrarmos marcadamente das situações que delimitam “ciclos” e se tornam significativas a ponto da gente achar que ali inquestionavelmente foi “feliz”. A questão nisso tudo, porém, é pensar sobre o que está entre uma coisa e outra, o percurso. O meio é o agora, e dele ninguém costuma falar muito.

Meios são maçantes, lineares, pouco excepcionais. São como uma pena a se pagar (a moeda de troca), uma prova dura até que alcancemos o grand finale, explosão quase orgástica dos cinco minutos em que algo realmente acontece – e é tão imensa que se torna perceptível mesmo a quilômetros de distância. São poucos e raros esses momentos na vida – acho que já vivi um ou dois. Nessa hora, não há nem recordação do que poderia ter sido gosto amargo na boca, dor latente de feridas crônicas, noites cansadas sem sono, antigas novas manchetes diárias repetidas no jornal impresso a cada manhã. São momentos em que futuro não chega a ser nem uma possibilidade, porque a hipótese de que ele pudesse existir estragaria a imensidão da sensação real, presente e onipotente de plenitude que está sendo experimentada. Sim, estamos loucos por essa forma de sentir! Perseguimos ela a todo custo... Daí vem a busca incessante que cega tudo o que envolve o caminho, pois miramos obsessivamente em algo que está longe demais, foge ao nosso controle e que definitivamente não podemos ver.

Há, porém, um suspiro leve e bom em meio a esse desespero compulsivo, uma carta na manga do destino: de quando em vez, ao sermos pegos por um calor no peito que nos faz suar e borboletar a barriga, nos dispomos a abrir os olhos e perceber as cores vivas que nos cercam. Somos provisioramente curados da passividade indiferente, nos damos alta dos serviços

de “elocubração sobre o nada”, e nos enchemos de pressa para degustar todos os sabores novos e intensos que antes pareciam simplesmente não ter sal. Não é tão comum quanto eu gostaria, mas definitivamente faz parte do meio, porque, apesar de não marcar nada excepcional, é aí que sentimos verdadeiramente o quanto estamos vivos – é quando eu sinto que é maravilhoso estar viva, e que por todas as possibilidades inimagináveis vale a pena continuar a viver, cada dia por vez, com tudo aquilo que a vida pode me trazer.

Saudade.


A minha mãe se despede de mim ao telefone mandando eu ser feliz. Eu me emociono com o pedido. A voz é a mesma de quando ela pede para eu me agasalhar antes de sair de casa, ou não esquecer de tomar o café da manhã. Mas algo de verdadeiramente forte impulsiona o seu sentimento, e ele me toma de uma forma real e grandiosa. Sorrio, porque sempre achei bonito sorrir, sorrir e sentir.


Estranho assim, sinto junto ao riso algo doer em mim. Pensei em dizer que não me dói exatamente o fato de estar longe de casa, apesar da saudade que não me deixa esquecer um dia sequer que ela está aqui e me acompanha. Mas a verdade é que a dor é a própria saudade, disfarçada de bagagem fina, incômoda, latente, querendo me vencer pelo cansaço. Eu canso, mas continuo - mesmo com o peito vazio e os olhos cheios.


A música já dizia que eu tinha que preparar o coração, mas sempre achei que a idéia de destino, por si só, já seria soldado suficiente para combater qualquer tipo de sopro mais forte vindo das terras de lá. Maior engano não há. Eu sou o próprio vento vindo de lá, estou ligada umbilicalmente ao mar, à sonoridade do mormaço, ao misterioso ritmo que permeia todas as coisas, silenciosa e pesadamente. Sou feita daquele barro, que imprime em mim toda a forma de ver e sentir. Respiro fundo e me encho de orgulho da minha natividade. Mas ainda assim, estou longe...


Sei que a minha mãe reza baixinho todos os dias, e sei também que sua oração não falha. Sei que independente dos passos que eu dê, migalhas aos montes estão espalhadas pelo caminho por onde passei, e eu consigo voltar a qualquer hora sem sequer pestanejar sobre qual direção pegar. Sei que não importa quanto frio eu passe, quão exposta à chuva eu esteja, ainda assim, há braços do tamanho do universo esperando o meu corpo, com aconchego, proteção, chá de canela e mel.


Eu vim descobrir o mundo, e vi que ele tem prédios que tocam o céu. Mas o céu mesmo está lá. Cheio das minhas memórias com riso alto e extravagante, saia rodada e chinelos de dedo, e a certeza de sim, (mãe), ser feliz.


quinta-feira, 8 de julho de 2010

Sábado à noite

Todo o mistério por trás dos olhos pretos, o tecido preto, de cima a baixo, mas suficientemente indecente para revelar a pele. O nome de um homem. A repetição na boca cor de carne, o mexer enlouquecedor do corpo sob efeito de alguma droga endógena ainda não descoberta. Pulsação ritmada. O olhar pouco intimidado enquadra cada pedacinho para não perder um detalhe sequer. Provocação muda e mútua. Três por quatro só pra um, revelado pouco a pouco sob luzes fugazes. Ensaio de aproximação, um passo dissimulado, fingindo ser tímido demais. Todos os risos por dentro, risos no canto da boca, junto com a bebida escorrendo, insinuando o tamanho do desejo.

Sapatos altos, deixando alguns muitos centímetros de bônus, que parecem inflar também o ego. De vez em quando é irrecusável – e simplesmente bom. O jogo vai ficando forte, assim como as mãos, os braços e o resto . O cheiro chega, a textura e tudo mais, desfazendo a postura arrogante. A dança agora é quase um convite, explícita, conscientemente irresistível. Sem necessidade de palavras, é sim.

O sol amanhece cheio de ironia, com uma potente sensação das delícias não reveláveis do Sábado à noite...

segunda-feira, 5 de julho de 2010

Apêndice


Palpitação inútil e fora de hora. Eu sempre sinto com atraso. Parece que vivencio a emoção nos cinco minutos depois, na reprise dos atos que mexem fundo em mim. Quando deixo transparecer, já é tarde demais, e fica inteiro engasgado sem poder sair.


Eu tive todas as oportunidades imagináveis, e as deixei escapar uma a uma sem dar a menor importância. Bati as asas pra longe, bati os pés forte no chão, teimosiei gritando em defesa do meu direito de ter, sim, todo o tempo do mundo. Mas eu não queria tempo – o que eu queria mesmo era certeza, e no fim das contas, ela nunca veio. Agora, sinto mais uma vez que deixei passar por mim o que poderia ter sido de fato algo real. E o que restou do meu sentimento? ...Hipótese!


Será pranto bobo de coração vazio? Ou vontade birrenta de algo que se desfez, escorreu pelos dedos das mãos? Será só o rosto quente, ausente, pedindo cafuné ou será uma prece sussurrando por um motivo qualquer? Sabe Deus. Mas no fundo, sinto esse sentimento sem nome tomar proporções gigantescas em tardes abstinentes da sensação de hoje, e o reconhecimento do desejo não torna a angustia mais suportável... Estou inquieta, incabível, enlouquecendo e revirando por dentro! Olho a fotografia e me ponho quase entregue ao impulso, certa de que vou me machucar, vou me arrepender (nenhuma novidade). Tenho um passarinho no meu peito, e ele segue preso, cantando o canto mais livre à espera de ouvidos gentis, ouvidos dispostos. Aqueles.


Está tudo fora de lugar e é irritante a minha falta de controle.

domingo, 4 de julho de 2010

Valentino

Entro em casa como se finalmente chegasse ao meu esconderijo. Trago nos ouvidos e na pele o gosto da tarde deliciosa, e sou surpreendida pelo cheiro de canela que já habita cada cômodo meu. Nem tiro os sapatos para não perder tempo, mas a verdade é que eu quero estender essa sensação pulsante noite adentro. Quando o amanhã vier, quero que ele saiba que eu descobri a fórmula do riso e que agora ele mora em mim.

Hoje mesmo na cama antes de levantar tinha me enchido daquelas velhas desculpas pra evitar qualquer tipo de enfrentamento. Os pensamentos quicavam aceleradamente em minha cabeça, e a cada cinco segundos os planos quase definitivos viravam nada mais que poeira antiga e defasada. Pensamento-demodé. Mas de tanto ouvir, resolvi arriscar a idéia de prender a respiração e ir. E foi o que eu fiz: liguei o som no volume mais alto, pra obrigar as palavras em minha mente a dançarem a melodia todas no mesmo ritmo, sem me preocupar exatamente com o que viria depois. Só assim consegui sair, dedos cruzados e tudo. Um vestido verde, verde nos olhos - à espera de que fossem olhados profundamente. Lidos. Investigados. Violentados até que, por fim, e finalmente, se revelassem. Agora estou na rua, olhos, cachos, dentes e tudo. Presa do lado de fora do mundo. Solta na vida!

Um degrau, outro degrau, o sol tímido, mas definitivamente mostrando a que veio. Fila, gente em pé, gente carregando mochila, bolsa, sacola, um bocado de histórias que me deixam curiosa. Eu me sinto gigante, porque meu desejo não cabe dentro de mim. É como se as possibilidades todas da vida se desenhassem em minha frente, e depois saíssem correndo, como se brincando com a minha mania organizada e rígida de propor cada coisa. Continuo caminhando atrás de algo qualquer, inteiramente despida das minhas exigências virulentas, certa de que estou sendo levada ao lugar em que tenho que estar. Há tempos joguei uma moeda num poço de desejos, e aposto dias ensolarados como esse na capacidade daquela moedinha em fazer todos os milagres. Afinal, esse é trabalho dela.

Subo as escadas erradas e agora tenho que atravessar a rua em meio aos carros que decidem não ter freios. Nada pára, nem os carros, nem o tempo. Não tem problema. Me arrisco quase saltitante, certa de que o tempo não importa mais – ali algo me espera e já é meu. Vou vivenciar delicadamente cada suspiro, cada pingo de emoção que cair sobre o meu colo. Me abri sem reservas, me deixei ser tocada por todos os lados, levada pelo teor doce que se descortina à frente de mim.

Encontro um rosto que me faz palpitar disrítmica por uns três segundos, volto a mim, às paredes preenchidas de cores. São mãos, rugas, olhares, e o mar paralisado, como se deixando naquele segundo fotografar. Passeio através dos olhos de outra pessoa, mas acordo em mim lembranças que me fazem extrapolar. Um meio-corpo revelado na luz amarela já me fez acreditar que valeu a pena estar ali. Tenho vontade de dançar no silêncio, mas fico só imóvel, admirando.

Depois, como tudo, um café e mil revelações. Intocados estavam, e assim permaneceram, mas não deixaram de extravasar aceleradamente o que continham. Sem engasgos - só alguns. A tarde foi embora, preenchida das esperanças todas – concretizáveis ou não. Um livro, uma assinatura bonita, um toque de carinho, mas sem tocar. O desejo de fugir e ver tudo de perto, do convite pra ir junto, largar tudo, reconstruir, reinaugurar. Ai, o desejo.

Um tapete com flores me espera na porta de casa, e eu adentro o esconderijo, tiro aos poucos a fantasia, lamentando me despir desse papel... Não entendo ainda o que se passou, mas certamente me ouço declarar uma paixão que nem sabia que ainda existia aqui. Forte e viva. Um fragmento de mim grandioso.

sábado, 3 de julho de 2010

Ponto, falei.

Eu estou bem aqui, de carne e osso, tentando encontrar as palavras certas. Não deu certo a tentativa de fingir que não tenho pele, a verdade é que tenho tudo: corpo, desejo e sonho. Todo mundo precisa de inspiração, engano meu achar que estava imune. Passei muito tempo tentando me esconder, justificando a mim mesma que estar longe significava estar protegida, e agora engulo seca a solidão pelas minhas gargantas, sem saber por quem chamar. A vida não cai do céu... Tolice minha achar que estaria satisfeita em me colocar à margem, em passar pelos fatos sem sentir. Eu, tenho, sim, pele e ela arrepia... Estive evitando qualquer coisa que causasse dor, mas me dói a ausência de voz, de riso com os olhos puxados, de uma outra taça - mesmo que depois eu esteja sozinha outra vez.


Nunca estive tão vulnerável ao meu medo, mas nunca estive com tanto medo por não ter o controle. Quantos riscos mais eu vou ter que correr? Eu os assumo todos, porque o silencio calmo perturba cada centímetro de mim, e a verdade é que eu não quero estar sozinha. Está feito, assumo que não sei viver só comigo, e sinto essa exposição tão extrema sobre quem sou me queimando inteira por fora e por dentro. A transparência arde.


Eu posso conter esse desespero que toma conta de mim, juntar as minhas pernas e respirar bem fundo, sussurrando um mantra e insinuando uma meditação. Posso tomar um banho longo, colocar pijamas confortáveis, apagar as luzes. Posso preparar um café sem pressa, deixar que o cheiro preencha os cômodos da minha casa, e depois ingerir cada gole como se eles tomassem vagarosamente tudo que há em mim. Eu posso me alegrar pela liberdade de invadir o mundo de uma pessoa qualquer pelas páginas do livro na minha prateleira, e provavelmente é isso que eu vou fazer essa noite, após o banho quente e o café forte. Vou secar as minhas lágrimas, tirar os fones do ouvido e afastar essa música repetitiva que me traz a vontade de cantar com alguém. Não há mais procura no vazio dessa escuridão. Eu estou só, numa constatação diária, sem dramas, que nem deveria mais me ser tão dolorosa. É quase uma escolha, uma estratégia disfarçada de proteção. Eu já devia estar acostumada.


O meu mundo não está se esvaindo em pedacinhos, também não tenho reais motivos para soluços de desespero. Ainda agora toca o meu celular, e meu coração acelera na esperança de algo que me abra um sorriso, mas não é ninguém. Um aviso impessoal da empresa telefônica me convida a baixar jogos sem pagar por eles, e eu não consigo não pensar na grande ironia que isso é. Com quem eu vou falar sobre o meu coração manhoso, fingidor de dor? Será que a vida inteira eu vou ser essa garotinha de 12 anos? Não posso estar mais exposta que isso, mas agora não importa manter qualquer tipo de aparência madura. Eu clamo por socorro (e mantenho-me paralisada nos sofás). Não é que eu esteja vivendo nada novo, não houve sequer um sinal de alerta. O mar está do mesmo jeito, as luzes no mesmo lugar, os objetos empoeirados intocados, e eu aqui. Nada em mim se alterou, nem sinto o ritmo da minha respiração. Mas é sofrido do mesmo jeito, inexplicável o transparecer hialino da minha alma.



(Eu sou passível de ser feliz, e digo isso baseada nas incontáveis oportunidades diárias que não consigo ver. Eu sei que algo em cores irradia de mim. Há uma sensação potente e inexplicável que me emerge e que eu não sei o nome... Eu tenho chances, consigo vê-las, e elas me aparecem timidamente em convites despretenciosos, quase desatentos... Eu não sei o que eu quero, mas não quero mais ser minha única companhia. O mundo é grande demais pra ser admirado só pelos meus olhos – eu quero dividir a vida, dividir ela inteira.)

Cinza

Não sei se é desinteresse ou medo o que me faz distanciar da minha própria vida. Mergulho em viagens para a Indonésia, me transporto pra uma Nova York antiga na pele de um adolescente em crise, viro uma detetive mamão-com-açúcar apaixonada pelo analista. Tudo para fingir que não sou eu. Quero um remédio que me faça ficar submersa, que paralise meus pensamentos, e encha de ar suficientemente meus pulmões até eu me sentir pronta. Chego a tremer sob a suspeita de qualquer barulho, mas silenciosamente sei que estou gritando por resgate. A verdade é que eu estou cansada de precisar que a salvação venha de fora, e dessa vez me voltei definitivamente pra dentro. Estou virada pelo avesso, enxergando meu coração se contorcer de desamparo. Desnutrida. Um véu cobre o meu corpo desolado, e com ele vou flutuando pelos dias sem fazer a menor diferença.

Eu costumava saber o que eu queria. Costumava acreditar nos outros, acreditar em mim mesma, mas tudo isso de repente se transformou num ceticismo rabugento e inabalável. Meu pincel só desenha tons de cinza, e nada mais cabe em mim, nem mesmo as promessas- as boas promessas. Não adianta falar comigo, meus ouvidos não querem ouvir – porque dói. Como alguém mais vai ter as respostas se nem eu mesma as tenho? Não quero mais o sereno, desisti de me expor a ele, mesmo sabendo da possibilidade de encontrar despretensiosamente lá no fim um cobertor e um céu com estrelas. Abdico temporariamente da esperança, enquanto espero que nada aconteça.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Silêncio

Não é que a vida está chata ou nada assim. O coração está calmo e eu aprendi a não ver a bradicardia como mera falta de emoção. Mas o mundo passa ao meu redor, e eu só vejo borrões. Ao meu lado, rostos correm acelerados, com batidas mais fortes e a inspiração aguçada. Eu perco o timing, chego atrasada e sem perna, e finjo que a verdade é que nunca esteve ali. Algo em mim me puxa pra lugar nenhum, e eu fixo os meu pés no chão, o corpo doído, as lágrimas cansadas. Me falta pulmão, mas falta também faísca. Às vezes é como se eu estivesse concentrada demais em me proteger. Não é tristeza, não, é um estado quase contemplativo do vazio. Eu sei que no fim das contas eu estou à espera, e em meio a cometas irradiando um pedido de desejo, me vejo calada, sem saber o que pedir. É como se ficar deitada na grama, olhando o céu, sozinha, nesse minuto bastasse.

Quem dera esse minuto fosse eterno..

segunda-feira, 10 de maio de 2010

Segredo

Seus olhos tristes, olhos doces, olhos fundos. Um mar sem fim, manso, suave, como a maré quando está bem baixa. Um mar sem fundo, misterioso, pesado, como dias em que o tempo muda sem aviso prévio. Convido-me a olhá-los sem medo, encará-los de frente, como se disposta a mergulhar até onde eu for, até onde me deixe ir. Serena, respiro o último ar abstinente e me permito envolver por um nevoeiro azul infindável. Sou pouco a pouco absorvida, até que paro. Um desvio seu. O que há aí dentro que tanto machuca, tanto dói, grita, mas não pode sair, nem em forma de água com sal? Estendo uma mão, a outra mão, já levada por uma correnteza fina e sem rumo... Peço que me leve, sim, sem questionar minhas intenções. Eu quero ir, quero habitar. (Deixe-me entrar?). Não há respostas além, porque não há mais perguntas. Morro nesses olhos, hipnotizada pelo vazio transparente. O que será, que será?

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Sopro de...!

Eu finalmente não tenho motivos para acreditar na dor, ela, uma velha conhecida. Depois de escorregar pra dentro de um buraco e cair infinitamente, encontrei o chão, firme e mais incrédulo que eu. Ventava leve, e eu me joguei num redemoinho , apostando na minha inquestionável capacidade de voar. Quebrei as asas, quebrei a cara, despedacei meu coração em mil pedacinhos-clichês (É uma pena que só me venha essa imagem à cabeça, e eu a vivencie repetidamente. Já pedi pro pensamento, um outro disco, por favor...).
Não é descaso, nem desejo de vingança contra esse vento ruim. Ele seguia o seu curso, e inevitavelmente me pegou – eu me deixei mesmo levar. Mas ele girou, me arremessou de um canto a outro, chacoalhou meus sentimentos todos, e finalmente me deixou sair. Ou eu percebi que ele não era tão forte assim. Agora estou aqui, pisando um chão inacabável sem a menor vontade de ficar tão segura. Corro atrás do carrinho de algodão-doce. Certeza, vou comprar um catavento...

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Not yet.


Na limiaridade trivial, um algo escapa e explode em forma de emoção. Como fogos de artifício em dias de comemoração, anunciando que existe algo ali por que vale a pena parar e sentir. Eu paro e sinto. Meus olhos falam todas as palavras que me faltam agora. O espetáculo tênue se desenrola em saltos nas pontas dos pés, primoroso, inacreditável e acima de tudo, belo. Eu demoro a acreditar.
Não sei o que torna algo extraordinário. Mas brota em mim uma certeza que identifico sem a menor dúvida, porque é um algo novo, diferente do meu ceticismo diário, cansado, rabugento e sem modos. Tenho vontade plena de me jogar, mas espio com cuidado e me encho de medo. Me sinto uma menina que acorda no meio da noite assustada por uma coisa que não está exatamente ali. A verdade é que eu já vi abismos disfarçados de jardins. Tenho cicatrizes que me lembram diariamente que rodopios são para quem tem asas. Onde estão as minhas? Lá, no céu, com as explosões vivas de... (suspiro)... Exceções.

segunda-feira, 19 de abril de 2010

"Dionísio..."

Voz e vento. Um canto fora de mim que ecoa em minhas arestas. Aroma, corpo, verso. O copo meio cheio, o gosto meio amargo, a meia luz. Pela janela o pisca-pisca luminoso em meio à escuridão. Meu ouvido calejado já não escuta a promessa no silêncio. Sinto que há um certo ar de surpresa na continuidade previsível, e eu continuo me deixando levar. Não, eu não lamento nada. Me ponho nascida outra vez, quantas preciso for. Uma vitrola toca sozinha, como se fosse para ninguém. Reclama a desfeita, canta o choro de outro alguém, e eu velo noite adentro a ausência que vem de dentro de mim. Misterioso pesar. Chá, limão e mel. Preparando a métrica, à água de rosas. A noite tem um fim, mesmo sem eu ter achado a pontuação. As coisas do lá fora beiram o redor, como se pedissem para entrar. Só eu sei.

domingo, 11 de abril de 2010

Minha querida


Um vazio, sentimento inexplicável, me toma e me deixa paralisada. Como um super poder, a força da notícia de como a vida se dá. A gente faz planos de um futuro florido dos nossos desejos, e enche ele das pessoas essenciais. Sem elas, é preto-e-branco, é mudo, sem som. Eu tinha uma certeza, e não a perdi. Mas hoje, sinto-me colocando os pés quentes num chão frio, pega de surpresa por essa coisa chamada... Curso da vida.
A vida, já me disseram uma vez, se faz nas suas curvas, encontros e desencontros, e deixa as marcas embutidas no nosso peito ao longo do tempo. Se esse tal destino é uma sucessão inevitável de fato após fato, coloco-me hoje de mãos atadas, pedindo baixinho que ele não me leve as minhas, até então, certezas boas. Porque de todas as dores da vida, a mais sofrida é a perda do antídoto natural a todas elas. Não acredito em acaso. Mas acredito em caminhos separados, em lágrimas de resignação, em abraços de “boa sorte, te amo, estarei aqui”. Isso não me basta, não agora, quando estou tão exposta à impossibilidade. O que faço com o meu futuro certo, pintado de colorido, suave e doce, preenchido das pessoas indispensáveis? Há horas fáceis, horas difíceis, e não me queixo disso. Mas não aceito as horas cruéis, essas nuances que já nascem com o direito de existir, só porque de antemão se justificam na conversa fiada do destino. Alguém precisa avisar a ele que dói. Eu já não tenho mais palavras...

terça-feira, 23 de março de 2010

Confessionário


Se deveria haver alguma limitação pro pensamento, esqueceram de me avisar. De qualquer forma, está imposto e já me habita inteira. Sinto o gosto pelo olhar, e gosto dessa conversa muda. Confesso. Me basta a cara lavada, a melhor das intenções, e aí estou no jogo. Fingida. Mas não duro muito, uma grande pena - o riso me denuncia, no canto da boca, mesmo quando ainda invento uma boa desculpa. Há um quê de implícito nas atitudes milimetricamente não calculadas. Um suicídio, um convite ao deleite, que eu já aceitei antes mesmo do pedido. Uma noite inteira para todas as máscaras, os papéis diurnos e intransponíveis. Lá e cá. Assim é bom. Há um pecado em cada suspiro, e pros devaneios, olhos fechados. Sem censura. Palavras soltas, e só elas. O resto todo está preso, contido, amarrado, insaciável e louco pra sair. Estou suando por baixo do ar de quem não quer nada. Um tom doce pra acidez do sentimento. Há um descaramento delicioso em toda essa transgressão oculta, devo dizer. Sem rosto, sem idade, sem nome, sem endereço fixo. Sem a menor possibilidade.

segunda-feira, 15 de março de 2010

87 anos

Esse é o meu nome, e eu não sei o que significa. Se perguntarem por mim, diga que estou febril, que tenho todos os efeitos dessa inquietude em chamas. Não há o que dizer, só esperar secar. Já já vou ter 87 anos e nesse meio tempo tento incansavelmente descobrir do que são feitas as verdades absolutas –além de todas as outras não tão absolutas assim. Não é tudo meio irônico? Fico aqui pensando que pode haver, sim, milagre num copo de água mais gelada. Ou num mundo particular onde não importa se está certo ou errado. Há algo fora de mim que acende e apaga todos os dias, à espera de olhos leves, mas enquanto isso, estou tomada pela plenitude de um calor que me priva das possibilidades mínimas, num pisca-pisca alerta de sirenes altas. Tenho medo e nenhum fundamento. Se há destino, estou agora perdendo tempo, sofrendo por algo que já espera por mim. Mas só enxergo uma onda quente e forte vindo em minha direção, um fogacho preso na minha garganta, e a dúvida: será que eu vou? Não sei decidir.
Já já, 87 anos.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Peças

Eu tenho que encontrar duas ou três peças numa estante bagunçada, que ninguém mais se importa. Acho as três, acho mais que três, mas me desespero. Não basta. É como se não fosse suficiente. Nunca. A sessão acaba, o dia acaba, as pessoas voltam pra casa, entram no ônibus, abrem a porta da frente. Nem se anunciam, tiram os sapatos apertados, se livram do peso, sentam em frente à TV. As pessoas abrem a geladeira, comem uma coisa qualquer em meio a um relato de incidente quase imperceptível do meio da tarde. Elas telefonam no horário mais barato, cortam as unhas, preparam ovos mexidos. As pessoas abrem um novo sabonete com fragrância de framboesa que compraram para experimentar. Escovam os dentes com a pasta de sempre, com a escova velha de sempre. Jogam fora a correspondência antiga, ou a que veio pro destinatário errado. Repensam o dia seguinte. Dormem juntas, separadas, sonham. Nesse ponto, especificamente nesse, eu tenho medo. Porque eu volto. Continuo a procurar as peças, continuo só, no quarto vazio com a estante bagunçada. Estou já com um monte de peças, e eu não preciso de todas elas, eu sei que não preciso me esforçar tanto pra nada. A verdade é que tudo devia ser bem mais leve, principalmente quando se está subentendido. Eu podia entregar aquelas lá e deixar o resto fluir. Ninguém ia reclamar comigo... Afinal, três é um número bom. Mas eu não me convenço. Ao fechar os olhos, começo a procurar peças...

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Para se evitar conflito, tem que estar só. O tempo todo. Tem que estar trancado, fechado numa caixinha pequena e escura, longe de toda a espera. Para que não haja voz mais alta, palavras com pontas afiadas, nem feridas não cicatrizáveis , deve-se ser apenas um. Sem expectativa, sem sonhos partilhados, sem vontade de dividir. Para que não haja erro, irritação, decepção, tem que se abdicar da surpresa, da espontaneidade que vem do outro, da possibilidade de se deixar ser descoberto – e descobrir.
Eu tenho meu exílio, minha solitária, minha ilha só minha. E não os maldigo, porque ora ou outra sinto a necessidade de estar só comigo, e mais ninguém. Me sinto sufocada, envolta em um redemoinho, e às vezes eu preciso de um tempo pra mim, pra me proteger, me aquecer, me aceitar. Mas a verdade é que eu não me completo só com a minha voz. Por mais que eu me machuque, me magoe, que eu quebre o meu coração em pedacinhos mil, ainda assim, só estou inteira se estou no mundo, se estou com o mundo.
É desprotegido com os ruídos de dentro, apenas – eu preciso do silêncio preenchido na presença de alguém ao lado, calado, de braços dados. É frio demais apenas com o pano de todos os cobertores do inverno. Eu preciso de um chá antes de dormir, um beijo de “Boa noite, bons sonhos”, alguém que apague a luz e esteja ali. Eu preciso que me ajudem a rir de mim mesma, que me façam ver graça nos pequenos deslizes diários – quebrar um salto, derramar café na calça, estourar a caneta na mão. Alguém que goste de mim assim, como eu sou.
Para vivenciar tudo isso eu não posso estar só. E para não estar só, é preciso estar disposto. É preciso perder o medo, abrir os braços e se jogar.
A gente eventualmente cai – mas ainda assim eu prefiro o risco. E voar.

Ouvindo Tell you something – Alicia Keys

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Desmilinguida

Me questiono às vezes sobre a validade desses pensamentos ditos empíricos que vêm pra nos mostrar como valorizamos pouco as coisas importantes da vida. É um blá blá blá filosófico bem irritante pros momentos em que nada parece estar no lugar – nem a pobre coitada mocinha da novela tem sossego, só sofre. Não vou mentir, eu empatizo.
A vida é como um jazz, e esse não é um pensamento meu, é uma constatação. Todo o envolvimento deliberadamente não sincrônico, o jogo incessante de chamada e resposta, e você precisa de um farto rol polirrítmico pra dar conta do recado. Um ar sincopado, um ar exaltado. Transgressor, melancólico. Afinal, a vida é vida, sem hesitação – you have gotta take the risk (e definitivamente não fui eu quem inventei isso). Como na vida, não há jazz sem jogo de cintura, sem improvisação.
Hoje eu estou assim, sem tentar entender, repentinamente disfórica. Estava tudo comodamente linear, e eu devo admitir, não estava reclamando. De uma hora pra outra, dei um salto de notas, e agora me perdi no caminho. Já não sei explicar usualmente quase nada, agora é que eu não vou saber mesmo! Até meu desejo de pôr pra fora me dá uma rasteira e brinca com a minha disposição. Perdi, meu Deus, o eixo da onda, dei um escorregão, caí de bunda. Agora estou aqui, desmilinguida demais pra pensar.


(Nada de nadar contra a maré. Se me puserem contra a parede, eu ligo alto o CD da Billie Holiday na faixa 3, e deixo tocar...).

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Someday



A vida é boa em suas arestas aos milhões, seus ângulos tortos e deformados, suas surpreendentes revelações de cada dia. Eu, sinceramente, não posso reclamar – a minha cuíca chora com gozo, e reza na ponta do pé.
Hoje me toma um ar tranqüilo com o cheiro doce daquela flor de amanhecer. Minha cabana tem um teto feito de estrelas, e nele cabe o céu inteiro, iluminado, misterioso, todo escuridão. O som mareia quentinho o meu pé de ouvido, acaricia minha nuca num arrepio bom, e me deixa dormir em paz.
Ao sair do porto, a vela abre e ganha o oceano azul. Sento-me na proa, abro os braços e vejo calmamente a imensidão sem fim, sem pressa de chegar. O vento que passeia por mim é gentil, e não me deixa pensar em trovões. Eu esqueço os trovões, o relampejo, o incomunicável. É como se, naquele momento, os meus pulmões cheios e vivos bastassem, e o seu silêncio fosse a minha oração. Sem pretensão de ter um rumo – eu confio no instinto ao fechar os olhos e me deixar ir. O peso e a leveza, todos na mesma medida, e eu estou simplesmente completa com o nada que tenho. Mais uma vez meus pulmões me lembram...
A vida é boa em suas caixinhas cheias e prontas a encher, mas é boa também em seus caminhões de descarga. Ela é cheia e praticável, mesmo no redemoinho, no turbilhão que embaralha os corpos e as outras vidas com a nossa. É boa quando estamos sós, quando somos plenitude.
Sinto-me invadida por essa sensação preenchida e calma, sem incômodo algum, nem mesmo questionável. Sou o próprio barco a vela, à deriva, à espera. Sem destino e com tudo posto.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Olha


Onde é que estava com a cabeça? Será que a resposta é tão absurdamente óbvia que eu não consigo decifrar? Preciso de um pouco mais de loucura, de alho, sal grosso, pimenta. Não combina comigo essa coisa cheia de açúcar, eu já devia ter previsto.
Preciso rever historias antigas em camisetas salmão. Histórias assim, de corredor. Chamadas não identificadas, não esperadas, não desejadas. Tudo mentira. Eu posso até pensar em atender, mas não quero me curar de nada disso. Quero jogar pela janela. Não há normal. O pingo, a gota, a pitada mínima de qualquer coisa. Uma promessa disfarçada de sorriso, um sorriso que não estava na boca, estava na cabeça, na mente acelerada, que piscava ritmada aproveitando a bola no teto cheia de espelhinhos pequenos. Se eu posso pensar, prefiro fechar os olhos e pensar inteiro. Com cheiro, som, toque, arrepio, e sorriso. Um sorriso outro.
Eu juro que acho natural, sem dedos cruzados, sem necessidade de graça. Teimosio ainda porque não tenho mais o que fazer, sou desse jeito mesmo, metida ao avesso, a ser do contra, contra a corrente, contra a ordem explícita dos fatos. Não gosto de enxergar, porque os olhos fechados me enchem do que quer que seja, do que quer que eu queira. Pra que ver?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Ney, Cazuza e Poema.

Haverá sempre a África, meninos remelentinhos e a sensação de estar vivendo História.
Haverá sempre Paris, luzes que iluminam beijos apaixonados, cadeiras em cafés voltadas para a rua, para que se veja como as pessoas passam pela vida.
Haverá sempre a Bahia, o calor que vem da terra, do mormaço misterioso e sem fim, do maracujá doce que adoça também o medo.
Haverá sempre uma lembrança, um vestido cor de rosa, um charuto metido a sexy, que desfila entre dedos, entre mais que uma boca.
Haverá sempre o desencontro, o descompasso, a raivinha fina como chuva, como garoa que vem só pra provocar, pra se dizer viva.
Haverá sempre a beleza dos sonhos imensos, a caixinha secreta dos desejos quase ocultos, os momentos sinceros de uma ou outra revelação.
Haverá sempre o mistério.
Haverá sempre uma boina garança, uma boina francesa, uma boa desculpa pra rirmos de nós mesmos.
Haverá sempre São Paulo, com seus prédios infinitos e menores que a saudade, com as milhões de possibilidades encantadas e vazias, porque não tem quem precisa pra preencher.
Haverá sempre o passado com seus fantasmas em forma de coração.
Um cd com músicas que faltam.
Um telefone que não toca.
Uma ligação que dura a eternidade.
Haverá sempre uma vontade de abrigo, uma vontade de certeza, uma vontade de pra sempre.
Haverá sempre um coisa esquisita, um estranhamento sem nome, mas que existe e que ficou em mim.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

Meu canto

Pra quem eu canto a minha música? Sinto que a voz no meu peito grita pra sair, e eu me pergunto se ela deve sair em forma de riso, em forma de choro. Me sinto infinita, com todo o sentimento do mundo dentro de mim. É uma canção repetida, mas sinto como se a estivesse descobrindo pela primeira vez, porque renova em mim uma vontade de me expor, de mostrá-la em suas arestas mais imperfeitas, mais milimetricamente frágeis e incompletas. Como um quebra-cabeça cheio de peças mal encaixadas, deliberadamente mal formadas, à espera de um pequeno ajuste aqui, uma jogada mais gentil, uma reviravolta sutil e avassaladora.
Na verdade não há nada de errado, mas o canto não deve caber em uma planilha pré-programada ou num arquivo mil vezes revisado. Ele tem que estar no mundo, tem que ter vida própria. Não precisa métrica, não precisa de toda uma preparação exaustivamente ensaiada, com brilho, iluminação especial e, inevitavelmente, aplausos. O canto deve sair descarado, contorcido, extrapolado, exagerado, quase deixando as minhas bochechas vermelhas. Deve sair quando achar que encontrou ouvidos dispostos e abertos, ou quando achar que simplesmente precisa jogar-se ao vento. Uma música preferida ou nem tanto assim – mas o sentimento bruto e ainda quente.
Tenho vontade de um microfone baixinho, uns sussurros roucos e um expectador atento, minimamente curioso. Só para cantar quem sou, para me fazer ouvir. Para que me veja, sem que precise de olhos.