terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Peças

Eu tenho que encontrar duas ou três peças numa estante bagunçada, que ninguém mais se importa. Acho as três, acho mais que três, mas me desespero. Não basta. É como se não fosse suficiente. Nunca. A sessão acaba, o dia acaba, as pessoas voltam pra casa, entram no ônibus, abrem a porta da frente. Nem se anunciam, tiram os sapatos apertados, se livram do peso, sentam em frente à TV. As pessoas abrem a geladeira, comem uma coisa qualquer em meio a um relato de incidente quase imperceptível do meio da tarde. Elas telefonam no horário mais barato, cortam as unhas, preparam ovos mexidos. As pessoas abrem um novo sabonete com fragrância de framboesa que compraram para experimentar. Escovam os dentes com a pasta de sempre, com a escova velha de sempre. Jogam fora a correspondência antiga, ou a que veio pro destinatário errado. Repensam o dia seguinte. Dormem juntas, separadas, sonham. Nesse ponto, especificamente nesse, eu tenho medo. Porque eu volto. Continuo a procurar as peças, continuo só, no quarto vazio com a estante bagunçada. Estou já com um monte de peças, e eu não preciso de todas elas, eu sei que não preciso me esforçar tanto pra nada. A verdade é que tudo devia ser bem mais leve, principalmente quando se está subentendido. Eu podia entregar aquelas lá e deixar o resto fluir. Ninguém ia reclamar comigo... Afinal, três é um número bom. Mas eu não me convenço. Ao fechar os olhos, começo a procurar peças...

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Para se evitar conflito, tem que estar só. O tempo todo. Tem que estar trancado, fechado numa caixinha pequena e escura, longe de toda a espera. Para que não haja voz mais alta, palavras com pontas afiadas, nem feridas não cicatrizáveis , deve-se ser apenas um. Sem expectativa, sem sonhos partilhados, sem vontade de dividir. Para que não haja erro, irritação, decepção, tem que se abdicar da surpresa, da espontaneidade que vem do outro, da possibilidade de se deixar ser descoberto – e descobrir.
Eu tenho meu exílio, minha solitária, minha ilha só minha. E não os maldigo, porque ora ou outra sinto a necessidade de estar só comigo, e mais ninguém. Me sinto sufocada, envolta em um redemoinho, e às vezes eu preciso de um tempo pra mim, pra me proteger, me aquecer, me aceitar. Mas a verdade é que eu não me completo só com a minha voz. Por mais que eu me machuque, me magoe, que eu quebre o meu coração em pedacinhos mil, ainda assim, só estou inteira se estou no mundo, se estou com o mundo.
É desprotegido com os ruídos de dentro, apenas – eu preciso do silêncio preenchido na presença de alguém ao lado, calado, de braços dados. É frio demais apenas com o pano de todos os cobertores do inverno. Eu preciso de um chá antes de dormir, um beijo de “Boa noite, bons sonhos”, alguém que apague a luz e esteja ali. Eu preciso que me ajudem a rir de mim mesma, que me façam ver graça nos pequenos deslizes diários – quebrar um salto, derramar café na calça, estourar a caneta na mão. Alguém que goste de mim assim, como eu sou.
Para vivenciar tudo isso eu não posso estar só. E para não estar só, é preciso estar disposto. É preciso perder o medo, abrir os braços e se jogar.
A gente eventualmente cai – mas ainda assim eu prefiro o risco. E voar.

Ouvindo Tell you something – Alicia Keys

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Desmilinguida

Me questiono às vezes sobre a validade desses pensamentos ditos empíricos que vêm pra nos mostrar como valorizamos pouco as coisas importantes da vida. É um blá blá blá filosófico bem irritante pros momentos em que nada parece estar no lugar – nem a pobre coitada mocinha da novela tem sossego, só sofre. Não vou mentir, eu empatizo.
A vida é como um jazz, e esse não é um pensamento meu, é uma constatação. Todo o envolvimento deliberadamente não sincrônico, o jogo incessante de chamada e resposta, e você precisa de um farto rol polirrítmico pra dar conta do recado. Um ar sincopado, um ar exaltado. Transgressor, melancólico. Afinal, a vida é vida, sem hesitação – you have gotta take the risk (e definitivamente não fui eu quem inventei isso). Como na vida, não há jazz sem jogo de cintura, sem improvisação.
Hoje eu estou assim, sem tentar entender, repentinamente disfórica. Estava tudo comodamente linear, e eu devo admitir, não estava reclamando. De uma hora pra outra, dei um salto de notas, e agora me perdi no caminho. Já não sei explicar usualmente quase nada, agora é que eu não vou saber mesmo! Até meu desejo de pôr pra fora me dá uma rasteira e brinca com a minha disposição. Perdi, meu Deus, o eixo da onda, dei um escorregão, caí de bunda. Agora estou aqui, desmilinguida demais pra pensar.


(Nada de nadar contra a maré. Se me puserem contra a parede, eu ligo alto o CD da Billie Holiday na faixa 3, e deixo tocar...).

domingo, 14 de fevereiro de 2010

Someday



A vida é boa em suas arestas aos milhões, seus ângulos tortos e deformados, suas surpreendentes revelações de cada dia. Eu, sinceramente, não posso reclamar – a minha cuíca chora com gozo, e reza na ponta do pé.
Hoje me toma um ar tranqüilo com o cheiro doce daquela flor de amanhecer. Minha cabana tem um teto feito de estrelas, e nele cabe o céu inteiro, iluminado, misterioso, todo escuridão. O som mareia quentinho o meu pé de ouvido, acaricia minha nuca num arrepio bom, e me deixa dormir em paz.
Ao sair do porto, a vela abre e ganha o oceano azul. Sento-me na proa, abro os braços e vejo calmamente a imensidão sem fim, sem pressa de chegar. O vento que passeia por mim é gentil, e não me deixa pensar em trovões. Eu esqueço os trovões, o relampejo, o incomunicável. É como se, naquele momento, os meus pulmões cheios e vivos bastassem, e o seu silêncio fosse a minha oração. Sem pretensão de ter um rumo – eu confio no instinto ao fechar os olhos e me deixar ir. O peso e a leveza, todos na mesma medida, e eu estou simplesmente completa com o nada que tenho. Mais uma vez meus pulmões me lembram...
A vida é boa em suas caixinhas cheias e prontas a encher, mas é boa também em seus caminhões de descarga. Ela é cheia e praticável, mesmo no redemoinho, no turbilhão que embaralha os corpos e as outras vidas com a nossa. É boa quando estamos sós, quando somos plenitude.
Sinto-me invadida por essa sensação preenchida e calma, sem incômodo algum, nem mesmo questionável. Sou o próprio barco a vela, à deriva, à espera. Sem destino e com tudo posto.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Olha


Onde é que estava com a cabeça? Será que a resposta é tão absurdamente óbvia que eu não consigo decifrar? Preciso de um pouco mais de loucura, de alho, sal grosso, pimenta. Não combina comigo essa coisa cheia de açúcar, eu já devia ter previsto.
Preciso rever historias antigas em camisetas salmão. Histórias assim, de corredor. Chamadas não identificadas, não esperadas, não desejadas. Tudo mentira. Eu posso até pensar em atender, mas não quero me curar de nada disso. Quero jogar pela janela. Não há normal. O pingo, a gota, a pitada mínima de qualquer coisa. Uma promessa disfarçada de sorriso, um sorriso que não estava na boca, estava na cabeça, na mente acelerada, que piscava ritmada aproveitando a bola no teto cheia de espelhinhos pequenos. Se eu posso pensar, prefiro fechar os olhos e pensar inteiro. Com cheiro, som, toque, arrepio, e sorriso. Um sorriso outro.
Eu juro que acho natural, sem dedos cruzados, sem necessidade de graça. Teimosio ainda porque não tenho mais o que fazer, sou desse jeito mesmo, metida ao avesso, a ser do contra, contra a corrente, contra a ordem explícita dos fatos. Não gosto de enxergar, porque os olhos fechados me enchem do que quer que seja, do que quer que eu queira. Pra que ver?