segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

Encontro

Eu não tenho freio. Quando dou a partida só páro quando tudo esgota. Você e essa pintinha no pescoço, pescoço que eu mordo sem pena nem paz. E não me procura, enquanto eu finjo não esperar, pra ouvir aquele jazz com copo americano, carona de um carro grande demais pra mim. Pequeno pro resto inteiro.
A minha poesia dá tons de uma saudade inventada, o pressuposto é completa mentira e eu me faço de desentendida. A mocinha de bons costumes falsos. A mulher que não cabe em si.  Dura aquela vez só, nenhuma outra além, pra não estragar o que se pode criar para depois, umas promessas livres perdidas na madrugada morna, a gente conhecendo pessoas que nos convidam a mais. Você concorda com tudo, agarrado à minha cintura, como se pudesse ser meu. Mas não é.
Os fins já não importam, nunca importaram coisa alguma, temos todas as horas até que se acabem. E elas duram esse pedaço de papel.  Num desvio de caminho, esquina de qualquer lugar, por acaso da vida houve um encontro. Ponto. Daí, pula-se uma linha, como se pula a expectativa.  ... Sem continuação. Nem necessidade. 

sábado, 15 de dezembro de 2012

_KEEP WALKING_

Lembro do dia em que meu samba chamou, eu ainda sem muita certeza se podia usar a cor inteira a meu favor. A voz rouca à meia luz, copo de vidro sujo de batom cor de rosa. Lembro do dia em que vesti o preto, por fora e por dentro, mas na manhã seguinte fingi que não queria mais e me fui. Sentada no divã, deixei que escorresse.  A vida repousa ao meu lado com uma cantiga nostálgica, doce, permitindo que tudo seja. Eu, fantasiada de mais. Acreditando ser mais. Até cessar. Lembro de noites calmas com braços ao redor, eu pensando querer para o resto das horas aquela mesma paz. Volta e meia sonho com ela, desliza uma falta resignada da tão falada paz que, eu sei, dentro de mim não há de existir.  Hoje não há lembranças, nem de antes, nem de depois, porque meu corpo paralisou diante do caos. Roupas pelo chão,  rabiscos pelas paredes nuas, eu, por toda a parte aos pedaços. Fluida. Fria. Vazia... Lembro do pôr do sol nascente, a dúvida entre um beijo e mais. Lembro de roupas brancas e apitares noturnos, chapas de pulmões carentes de ar. Como o meu. Lembro da promessa morna sussurrada baixinho no pé do ouvido, uma voz doce vinda do peito, acarinhando o que se mantém, apesar de. Forte. Firme. Cheio de luz. Lembro de tudo que não deixou de ser, nem de existir, e que cresce. Gigante. Maior que duas vezes eu. Por isso acredito. 

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Andorinha



Amanhã me deito com ela, Yemanjá em suas águas. Minhas mãos estão livres e agarram todo o palpável do ar. Esse, definitivamente, não foi um ano ruim, mas diante do empurrão no precipício, beira do pânico e desespero, decidi fechar os olhos e fluir. Nos braços de outro alguém. Ele segura uma criança no colo, e eu desejo, só por um segundo, que haja mais.
Diante das ondas que dançam, calmaria e devoção, curvo-me por ser mulher, permissão para entrar e sentir. A água do mar é doce, e corre inteiro o meu corpo sem pressa. Esse corpo que pede mais, canta e chora a dor de se sentir vivo. Penso ainda nela, cravando minha pele com linhas firmes, a letra da poesia que habita, mas dorme. Tudo meu entregue ao misterioso vão entre o óbvio e o nem tanto assim. Eu, que resolvi andorinhar por aí, sem me preocupar com a ventania. Meu turbilhão já rodopia um sem-cessar sem fim. Por isso mesmo eu continuo.
Palpável mesmo é o fato de cada dia. Decidi não me abster. 

Voando vou...

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Querida. Clarice.

Comigo funciona falar menos, até mesmo não falar. Há um ano e meio, um pouquinho mais, minha boca não podia abrir tamanho o espanto em me descobrir assim, corações palpitantes, uma tatuagem com a poesia brasileira, uma peça de teatro em que transitamos pela casa dela mesma. Esse último Domingo comemos massa e tomamos vinho, gente estranha e próxima, lado a lado, tentando a sutileza da intimidade de outros dias, de antes.
Adiantem os relógios, e adiantem também a vida, porque cada dia é novo e diferente do outro. Minhas mãos contam mil histórias, e eu as carrego dentro dos bolsos, por entre as pernas, debaixo das toalhas de mesa. Um anel igual, o presente. Familiar mesmo é a sensação de olhar as ruas correndo através da janela, enquanto todo o resto pára. Absorta, sou engolida por essa fumaça que traz pedaços do caminho todo, recordações de gostos, cheiros, piruetas no meio da estrada, biquinis de lacinho em dias de sol. Coisas pelas quais vale a pena ficar.
Acarinho meus pensamentos, aceito o convite, porque na verdade não sei bem como ir. Hoje, meu coração quer apenas dividir a sobremesa e dormir em paz.

domingo, 7 de outubro de 2012

Plaut Vincent

Casebres coloridos, livros indecentes, meu francês péssimo. Alguém toma aulas e me dá uma lição, e para ser simpática com meu lado travesso, retribuo a gentileza com pitadas de alemão. É freneticamente charmoso esse papo quase chá das cinco, quase você-bem-entendeu. Verdade mesmo é que me sinto na Rússia, eu, com essa literatura barata, com esse cheiro pagão. Meus pensamentos rodopiam reticências, ora estou alheia, ora quero voltar, mas insisto em não fazer exatamente parte. Misterioso lugar, esse que chamarei de meu. Alguém para entrelaçar língua qualquer. Antes dele -lugar- hei de conhecer todos os outros.  ...Viena foi feita para mim.

sábado, 6 de outubro de 2012

Ponto e vírgula

Gosto doce da bebida forte, mar de rosas sobre o chão. Tua. Ainda não anoiteceu e eu desejo estar em outro país. Bethania grita a sua rouquidão, dançando lá de pés descalços, e eu retribuo em minha sala vazia com móveis demais. Rodopios e lágrima.  Ziguezagueio uma conversa convincente, pitadas nuas de um bem querer que só se contradiz. Volátil. Meus dias não comportam mais maquilagens, saltos altos, olhos oblíquos - e coisa e tal - e eu ignoro a presença incômoda do espelho. Penso em escrever no meu corpo uma frase que signifique tudo que não sou por falta de coragem - quem sabe assim, por insistência da imagem, cada palavra comece a valer mais que mil, me convencendo, por fim,  do fato. A verdade é que tudo está à flor da pele, mas eu me cubro com panos demais. E nem está tão frio...  Gosto das páginas à espera, outro mundo onde não estou, mas posso entrar sem ser notada. Entro. Sento no sofá de couro verde, espio todas as frases entrecortadas. Minha perspectiva é inteira íntima, dou cadência ao que deve ser, sem realmente me preocupar. Apago as luzes e já não faço parte. Nessas horas sei ao certo que não gostaria de viver aqui. Sem novidade qualquer, confetes na varanda, lua cheia ou promessa pra depois. Arrastada, vejo pedaços meus ao chão especulando a primavera através das janelas altas. Inalcançáveis. Na minha boca, ecos do gosto doce. A voz. A lágrima. O ziguezaguear. E toda a verdade íntima e nua que, por ora. só eu sei...

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Sem fim

Eu aturo todas as verdades frias sem me manifestar. Gosto de brincar de ser dura comigo mesma, pra dar pano pra esquizofrenia por fora de mim. Ora, em meio ao caos que não respeita o limite de lugar algum (nem para além das Américas, como ouvi no telenotícias) assumo a pedante posição de alguém que luta apenas por um outro dia qualquer: acordar, banho frio, clic clic contra a mesa, tiquetaquear de horas sem fim. Meu maior bem é a poesia, que nesses tempos dorme. Sono profundo e bom.
Não sei se por cansaço ou sorte, tenho difiuldade em me impressionar com as coisas ditas impressionáveis. Eu, figurinha clichê cheirando a meia idade. Impressionante mesmo é quando se está em absoluto silêncio e algo te faz sentir. Sejam 324 metros ou 1,57. Tanto faz. A verdade é que enigmaticamente sonhos se constroem e desabam diariamente, e eu os vejo ser como se sentada na calçada da porta de casa à espera do vento que tarda em passar. O meu mundo gira em torno de um grande vazio, órbita de lugar nenhum. Sou mar de desassossego, e enquanto penso sobre o nada, deixo-me banhar da dúvida sobre o que realmente importa. Nunca há de ter fim.
Esses dias aprendi a admirar copos de leite num arranjo só, porque nem todas as primaveras são feitas de lírios.

sábado, 22 de setembro de 2012

Quando eu não te dava paz

O meu descompasso hoje me dá uma rasteira e me joga no chão, sem que eu tenha beijos doces antes de adormecer. Quando ele deixou de ser o melhor de mim? A minha indecisão, minha falta de tato, a madrugada rindo da minha cara com lágrimas, e uma grande epopéia sem sentido algum. Eu insisto em colocar alguém que não precisa de nada disso em meio ao meu turbilhão esquizofrênico. Louca. Eu sou louca. Deveria ter coragem de estar coerentemente só, mas eu quero mais sentir, sangue, suor, suspiro... E cheiro doce. Eu tenho saudade diária. Por isso amarro aos meus pés, com ataduras que machucam os punhos, alguém de alicerces muito mais fortes que os meus, mas que (por pena ou não sei o quê) insiste em me deixar acreditar...
Aguardo uma reintrodução frente ao espelho, esse é o meu nome, uma idade que não importa, uso dois brincos em cada orelha, um sempre maior que o outro, e tenho comido frango todos os dias dessa semana por preguiça de cozinhar. Aprendi a escrever quando pequena, mas esqueço as palavras todas as vezes que algo de fato me tira o fôlego. Às vezes eu gosto apenas de ficar em silêncio, mas na maioria das vezes eu grito. Grito um desespero que não tem a menor razão. Nada em mim tem harmonia, porque eu não entendo ao certo a forma de juntar tudo numa coisa só. Tenho sapatos fechados e abertos, mas gosto mesmo de andar pisando o chão de areia. Sei sorrir e chorar, mas faço com maestria os dois ao mesmo tempo, riso e choro por motivo algum. Gosto de alguém, não sei como gostar, mordo e assopro o tempo inteiro, quando no fundo eu só queria mesmo era morder todas as noites... Noites inteiras. Fazer a coisa certa sempre dá errado pra mim.
O meu desbalanço me dá arrepios, me cobre de frio, dessa sensação de falta, da vontade de olhar dentro dos olhos e simplesmente ser.
Se ainda há como saber, minha boca agridoce aqui espera...

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Breve ensaio sobre a tristeza

Não há solidão o suficiente.
Queria ficar deitada aqui, ouvindo o silêncio da noite, olhando o céu de estrelas, quieta, até o momento de morrer. De parar de ser. Como num respiro que deixa de existir, uma hora respira, na outra não respira mais, esquece de respirar e fim.
Não há lugar distante de fato, uma distância verdadeira, perto de lugar nenhum. Onde ainda não há mundo, e tudo é apenas prelúdio. Paz. Onde não existe sensação de falta, porque não se conhece para além do essencial, e o essencial está impregnado à necessidade de ser...
Não há solução para o amor. E sobre ele, todas as verdades já foram ditas. A gente sente ou não sente. Simples assim. O resto é lágrima que volta ao mar.

Breve ensaio sobre a tristeza

Não há solidão o suficiente.
Queria ficar deitada aqui, ouvindo o silêncio da noite, olhando o céu de estrelas, quieta, até o momento de morrer. De parar de ser. Como num respiro que deixa de existir, uma hora respira, na outra não respira mais, esquece de respirar e fim.
Não há lugar distante de fato, uma distância verdadeira, perto de lugar nenhum. Onde ainda não há mundo, e tudo é apenas prelúdio. Paz. Onde não existe sensação de falta, porque não se conhece para além do essencial, e o essencial está impregnado à necessidade de ser...
Não há solução para o amor. E sobre ele, todas as verdades já foram ditas. A gente sente ou não sente. Simples assim. O resto é lágrima que volta ao mar.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

Caleidoscópio


A menina balança aqui fora na rede, sozinha, livro aberto na página 44, pensamento longe. Nem sei ao certo se ela está aqui. Do lado de dentro marido e mulher deitados à cama, ele rindo de uma cena do filme de ação, que na verdade nem teve tanta graça assim, mas é uma risada boa de ouvir. Ela controla sua vontade de falar, porque os outros querem estar em silêncio - e por bem ou por mal há de se respeitar essa vontade.
Primeiro ela que é mais jovem, se banha na piscina, uma braçada aqui, outro giro ali, mergulhos fundos segurando o fôlego. E haja fôlego para levar tanta incerteza dentro de si. Um ar querendo provocar as paredes, as lâmpadas, os lustres, os guardanapos das mesas e o porta copos também - só não quer mesmo ser vista por gente, esse exercício complicado - pelo menos não explicitamente. Ela sai da água caminhando feito sereia, metade do corpo pra dentro, outra metade pra fora, levitando as dobrinhas saudáveis (para não dizer fartas) que carrega entre um e outro braço. Senta-se de pernas cruzadas, tipo borboleta, e fica olhando o mar, por horas, parada. Imóvel por fora... Somente por fora.

O marido, pai, senhor de cabelos grisalhos, oclinhos pequenos e fofos, esse é um grande coração imenso. Duas biritinhas das boas para aquecer o corpo, porque a alma já vem aquecida da vida. Tem somente duas expressões, a severa e esta que está usando aqui. Sorte de todo mundo que a severa ficou em casa, trouxe apenas a outra, que mesmo com chuva e vento faz tudo transparecer mais que perfeito.

A mulher, mama, beata, senhora do destino que teima em carregar suas horas - e a dos outros - sob sua própria vontade. Escolhe um caminho de tropeços para alcançar os corações , como esse percorrido até chegar aqui. Mas tem fé, e boa intenção na prece de frente pro resto do mundo...

Mangabeiras, árvores daquelas de mata fechada e animais com canto muito bonito. A verdade é que de não saber de onde vem a calma eles estão aqui, os três, à procura do começo. Outra vez. Já não se reconhecem completamente, estranham gestos, vozes, faces, até o tipo de prato a ser pedido no jantar. Mas se mantêm juntos. Unidos de um jeito torto. Doloroso e necessário...

No lugar onde tudo vai, tudo vem (e nada fica), visto minha capa invisível de adivinhadora de presságios. Homens de chapéu em cabeças muito altas avisam que aqui nada há de estar, é tudo parte de um plano para depois. Meu pensamento nem chega a pousar, ciente de que está em outros braços a milhas e milhas daqui. Perdi a chance de compor meus silêncios com suspiros de paz, sou só grito em desespero. A verdade é que agora habita em mim um turbilhão e meio, dois, três...
Melancolia logo de manhã, lembrança de outros tempos, sutil aviso de que estou gradativamente envelhecendo, sendo desfeita aos poucos. Inquieta sensação. A minha tristeza é aguda, transparente, mesmo sem saber ser. Cão que já não consegue saltar, as pernas bambas, fraqueza arrastada da vida inteira sobre os mesmos pés. Juventude viril que se depara com as infinitas reticências, o não poder ser agora – e não poder ser depois. Voz rouca madeirada pinga verdades em meu ouvido, profetiza horizontes nos quais não quero acreditar. Em fumacinhas agridoces a noite longa de amor dissolve-se inteira no ar, ressurge, revive e retorna ao vento, tornando-se pontos de luz no céu (e em mim). Enquanto preparo malas para seguir adiante, resta-me torcer. No barco que flutua para lugar nenhum me deixo ser invadida pelo frescor da promessa de amanhã, um amanhecer banhado de sol. Meu renascer...

sábado, 18 de agosto de 2012

Cheiro

Eu rabisco cartas de amor mal escritas, pressuposto de tudo que está em mim, e me inunda. Hoje a noite tem um nome, que eu desenho entre flores em pedacinhos de papel quaisquer, guardanapos, bilhetes de avião, lembretes na geladeira. Não tenho vergonha em parecer ridícula, um cheirinho no cangote como de criança, a urgência desajeitada do toque, a delicadeza frágil da pele. Tudo aquilo de mim que é só seu. Escuto músicas feitas para meninas de 15 anos, porque os meus pés já deixaram o chão, e o que faz sentido agora é apenas sentir.
Meu corpo relembra sozinho, refaz o caminho do sofá sob as janelas e a lua até o quarto escuro de cama grande – mãos, desabotoar, rir, olhar, não cansar de olhar. Pretensão minha achar que posso ler seu silêncio explicitando esse tudo que não pode ser dito. Mesmo assim, de olhos fechados, sentindo o seu cheiro se confundir com o meu, acredito te ouvir dizer que sente também esse tanto, a ponto de extrapolar. De não caber. De querer para além de hoje, todos os dias.
Carrego essas infinitas cartas de amor com aquilo tudo que eu quase falei, que eu quase pedi, que eu silenciei pulsadamente esperando ouvir você falar, você pedir. Você, que quase falou. Quase pediu. Carrego essas horas intermináveis em que desejei falar com você, estar com você, e todo o resto que não existe de longe. Essa distância dolorida, a vontade latente que não passa, que há de ficar aqui comigo, alimentando uma a uma as cartas de amor que nunca enviei. Carrego suavemente impregnado à minha pele o seu cheiro doce, aquele cheiro que você me dá quando não tem ninguém olhando, esse cheiro que faz com que eu me apaixone por você outra, e outra, e outra vez...

... Tão bom sentir...


segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Nagô

Aquele cafuné no cangote, pescocinho nu, toda baianidade nagô. Menina cheia de má intenção, mi, fá, sol e toda cantoria cheia de prosa encantada. Nessas horas, ela bem sabe se fazer mulher, sabe deixar-se despida no ponto certo de se deixar despir. Morde um pedaço da boca, puxa pra si como se ali qualquer pedaço fosse só seu. Provocação deliciosa, de quem tem ciência de todas as coisas. Corpo que pede com dengo, um cheiro aqui, outro cheiro ali, um beijo longo, e o resto mais. Corpo  febril. Pede porque quer, porque pode pedir, banhada da lua que lhe dá todo direito de sentir. Fogosa. Preta com gosto de mar. Nessa noite ela quer amar de janelas abertas, engolida pela noite que não tem hora pra acabar...  

sábado, 11 de agosto de 2012

Campeã do mundo

Tem alguém que sabe o meu sabor, meu nome, todas as minhas cores. Se eu pudesse escolher, o mundo seria um pedaço daquele chão frio, que ouviu tudo sem dizer nada, apenas consentindo em silêncio. Fico sem palavras só de imaginar, tentando recuperar o fôlego que me foi tirado sem nem aviso prévio. No fundo eu tinha absoluta certeza que seria assim. Eu sei que gosto.  Ontem descobri um gesto novo, reagi só com o corpo, quase sem pensar, e fui gradativamente me convencendo do quanto absurdamente isso me toma. Acordei sedenta. Vergonhosamente à espera. Se há algo que me faz pulsar sem que eu consiga impor controle algum, esse algo é pele. Pele na pele. Eu escorrida inteira. Carrego hoje um coração que me dá sinais de transbordamento, uma dor aguda da vontade de ficar pertinho, toda a fantasia de um sonho bom. Me pego ensaiando noites após ter bebido um pouco a mais, noites de celebração do primeiro emprego, e todas as outras ainda não vividas, veladamente desejadas, pedidas quase em forma de prece. Meus joelhos não cansam em pedir. Vez em quando meus pés voltam ao chão, me lembram da verdade dos fatos, do telefone que não deve tocar, do jantar com uma taça só. Entregue e sem medo, sinto que estou pisando nos ovos do meu próprio senso. Bamba entre o caos do certo, o caos do errado, tudo muito misturado diante de algo que é genuinamente bom. A melhor de todas as coisas.  Deixo para amanhã a realidade da vida. Eu, campeã do mundo, só por essa noite. 

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

Acabo de entrar em casa, escuro, silêncio, sofá vazio. Cheiro de ontem. Mantenho tudo assim, intocado, enquanto encolho num pedacinho pequeno do colchão frio.
Queria bater na sua porta depois de um dia difícil, seu apartamento naquele prédio alto de onde se vê a lua e as outras luzes. Queria ir entrando, assim mesmo sem pedir licença, ir tirando o casaco e os sapatos, antes mesmo do beijo de oi, que você nunca dá. Queria deitar na sua cama grande demais com o travesseiro gigante, e ficar encolhidinha nos seus braços, sem precisar explicar coisa alguma, só respirando o seu calor.
Queria voltar lá naquele lugar bonito cheio de bolas no teto, preencher o cartão fidelidade que o moço deu da última vez, e que a gente prometeu encher antes mesmo da validade vencer. Papelzinho no meio da minha carteira, esperando os carimbos das noites cheias de sabor e promessas...
Queria te chamar de meu amor. Meu. Amor. Sussurrar em seu ouvido a saudade de agora há pouco, do seu riso que ouvi de perto e de longe, sua mania de me fazer corar. Queria apenas dormir, acordar e ir tomar café da manhã, com suco, pão, banana e mel. Você, olhando pra mim por cima do seu jornal, ou do livro que você comprou recentemente porque gostou do que estava escrito no final. Queria contar pra você uma bobeira que o meu irmão falou, e me aqueceu o coração. Dizer que hoje eu quis ser mãe; que estou com uma cólica que não passa há 12dias; que eu roí as unhas sem querer.
Queria te esperar de pijamas, pantufas e aquecedor ligado, pra vermos aquele filme que está nos aguardando há séculos. Queria te esperar vestida apenas de pele e desejo. Velas, parede, pescoço, mais desejo. Um sofá pequeno o suficiente, horas inacabáveis, a boca na nuca, e toda a delícia de ser. Queria outro dia de sol, cerveja, seu carro parado naquele sinal fechado, eu te roubando um beijo. Queria mil beijos. Todos os beijos...
Queria arrumar as malas praquela cidadezinha que você prometeu me mostrar, pra onde nunca fomos com medo de sermos felizes demais. Queria ligar pra você agora e pedir pra comprar um doce antes de chegar aqui. Ou trazer um daqueles de monte que você tem e não come nunca. Roubar a caneta que você rouba de outra pessoa. Te levar um envelope, te pedir pra escrever o meu nome completo num convite que vou mandar pelo correio, pra bem longe... Ir com você pra mais longe ainda.
A minha casa espia os meus segredos, cúmplice de todas as minhas fantasias bobas. Há em mim uma doçura em lembrar da sua mão em minha mão, seu rosto me olhando de perto, e todo o resto que é só nosso. Real e nosso. Alimento os pensamentos que não te deixam ir embora, porque é bom quando você está perto. Aqui, sozinha, redescubro todos os sentires. Eu, que achava que não sabia amar... Hoje sou interamente feita de querer...

domingo, 29 de julho de 2012

Monet

A minha ilha hoje abriga os ventos frios da dura constatação de que, sim, eu sou um ser só. Vento que sopra o ar seco dos seus cabelos, que perderam o perfume para os suspiros de outro alguém. Dissabor. Existo enquanto fonte de sonhos melhores do que eu sou agora, motivo maior para eu sair do lugar comum e crescer. Mas nada tão óbvio me veste bem, a verdade é que eu espero palpitação, suor gelado, hesitação... E o que tenho é parede de tijolos frios.  Habito um pedaço de terra onde só cabe eu, um ego restrito, talvez não tão restrito assim. Há uma ilha vizinha que costumava soprar vento doce, cheiro doce, mas agora não chega nem perto de mim. Desenho uma casa de vidro, de onde posso admirar todo o esplêndido, sem tocar. Sem sentir. Sem nunca mais arrepiar. Porque já me disseram uma vez, a gente muda, e traz junto uma sacola nova de prioridades. Talvez agora eu precise apenas de paz.  Não concordo com meu pensamento racional de que ser só é, para além de uma escolha, uma constatação. A verdade é que a gente tem uma sede perene em dividir, porque só assim aflora o que há de extraordinário do lado de dentro. Sou mais bonita quando choro olhando nos olhos. Meus olhos tristes sendo vistos por um alguém que faz valer, palpitação, suor, hesitação. Clichê. Paixão. Vento que hoje sopra sem saber, me leva.

domingo, 22 de julho de 2012

Eu sei que ainda vou voltar


Olho no espelho e vejo todo o gasto. Distanciada dos muitos papéis, os ocultos e explícitos, o que eu sou é o que eu escolhi ser. Não há verdade nem mentira em mim.

(Quando eu vou matar a fome apenas com a ciência do que eu devo saber?)

Vejo uma ladeira sem fim, e penso apenas em descer por ela, para lugar nenhum. O meu maior desejo agora é descer por essa ladeira sem rumo, sem necessidade de entendimento ou fato. Apenas ir e descer - mas minhas pernas estão presas à ausência de algo que eu não sei.
...

sexta-feira, 13 de julho de 2012

Para a parte de dentro que parece dormir.

Quero marcar um encontro com você. Você, ou eu mesma, naqueles dias em que o mundo era bom. Quero entender o motivo do riso, o riso sem sentido, o riso pelo simples fato de rir. Quero aprender a ouvir música outra vez, decorar frases soltas que parecem ter voz, sublinhar trechos cotidianos que descortinam os mistérios tolos e óbvios num quase raio de luz. Quero te olhar no espelho e encontrar seus cachos soltos, seus dentes todos à mostra sem vergonha, seu olhar debaixo de uma linha marrom. Seu perfume cheio e doce. Você, inteiramente doce.

Quero te encontrar naqueles dias em que você se dá contenção, colo, carinho, papel toalha. Essa habilidade grande e rara de cuidar de si mesma, olhar para dentro com um pouco mais de atenção, de paciência. O exercício de saber respeitar seu próprio tempo. Esse potencial secreto de ser incrível, em silêncio, caneta e linhas em branco, poesia, sonho, inspiração.Essa você, que eu costumava ter.

Aqui jaz um corpo que pertence a você, e somente a você. Que te aguarda cheio de saudades, e transborda de amor pelo que de fato faz valer cada um desses segundos mortos. Canto uma canção de ninar, para que quando acorde, volte.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Crua

Não adianta perder aquilo que te serve, nem deixar que escorra o que lhe é essencial, as coisas simplesmente correm como devem ser. A noite foi feita também para os justos, para que travesseiros ouçam e sequem, para que o tamanho das coisas diminua até que fiquem pequenas o bastante a ponto de se fazer dormir. Hoje o som está tão alto que eu percebi não haver remédio. Fico pensando na diferença que faz minha "grande nobre" intervenção no mundo. Tenho medo do gosto amargo diluir o quanto eu me importo, deu sentir que entre o nada e o tudo não existe tanta coisa assim. Já me vejo abstenha, oscilante, desconfortável. Estátua. É doloroso o que não se pode fazer, ainda mais a constatação de que a dor é perene, âncora crua dos fatos... Reticências. 

segunda-feira, 2 de julho de 2012

Hoje estou pintando meus brincos de tom de pele, torcendo para que as luzes do dia se mantenham apagadas. Hoje estou fazendo desenhos em folhas de papel rabiscado, desejando evitar as vozes ao redor que insistem em perguntar. Sou a lágrima no rosto duro de pedra. Não entendo muito bem o que esperar do ego que me sopra forte no pescoço, aqueles anseios fortes de menina teimosa, que vivia ao contrário por insistir em acreditar.  Hoje acordei cinco minutos depois, a roupa de cama com cheiro do sabonete de longe, nenhuma expectativa em relação ao levantar. Não comi, nem chequei as mensagens, desejei que ainda fosse daqueles dias de não vir. Hoje eu sei que não vai haver sol, nem vai haver recordação doce com gosto de fruta que escorre pelo canto da boca. Hoje eu acordei às quatro da manhã, corpo nu e roupas pelo chão. Espalhada. Pensei que tudo poderia sim, ser uma boa idéia, mas não tive muita certeza. Repeti a rotina dos dias que não têm muito a acrescentar: levanta, vem, fica, fica, fica, fica mais, volta, come, dorme. Hoje eu permaneci com a sensação de que eu deveria chorar por algum motivo que eu não sei. Minhas mãos e bochechas queimando um calor de algo que precisa sair, e não tem forma. Encontro alguém que me olha como se soubesse de algo que não sei, e eu peço apenas um pouco de atenção. Mas logo desisto de tentar. Hoje eu acordei lembrando de ontem à noite e ri sozinha, pus uma música alta e cantei debaixo do chuveiro. Hoje eu decidi comer brigadeiro no almoço comer pipoca no jantar, não mais telefonar. Decidi desligar por um instante, luzes, cartas, sonhos, e esperar tempo suficiente para  amanhã amanhecer novamente.. 

domingo, 1 de julho de 2012

Pelo completo mês

Esse tudo que eu não sei me cobre hoje de nada. Eu escrevo as minhas palavras todas para você, que me lê olhando dentro dos olhos. A corrente deitada no pescoço nu, pescoço com cheiro de mais, blusa preta de sempre, paladar de casa. A minha poesia hoje tem cheiro de roupa que fica por muito tempo no fundo do armário, uma certa melancolia, a sensação boa do velho que continua ali, confortável. Sem pretensão, sem surpresa, sem novidade - só o que é, a verdade e o fato. Egoísta vontade, essa deu querer satisfazer o desejo do toque, tocar com os lábios, prelúdio de um beijo não dado que vira alimento da noite inteira. Esse direito não cabe a mim, mas pretenciosa que sou, permito-me ainda mais. Escrevo.  Sem esperar, espero um convite para ir àquele boteco, tomar a mesma cerveja com pouca cevada, parar no mesmo sinal que provocou todo o delírio da última vez. Espero que mande uma mensagem reticente, cheia de significado. Ou até que diga não querer, usando como justificativa a filosofia barata de um autor clichê - mas que agarre meus cabelos, minha nuca, arranque meu perfume para você, minha pele inteira sua.  Acho que você vai me desculpar, pela milionésica vez, por eu ventar desse jeito assim, quente e frio, leve e denso ao mesmo tempo. Vento que arrepia suave, mas sopra forte, meio desajeitado, fora de hora. Imprevisível, mas perene. Vento pra se deixar levar. Esse não é um pedido de nada. Nem um manifesto, menos ainda um recado. É só uma doce contemplação do mês completo, por ele permanecer existindo suavemente atemporal...  Sorte minha.

sábado, 9 de junho de 2012

Às sete horas;

De todos os fatos óbvios, o menor deles é explicitar as verdades sobre você. Eu invento CDs, diários, confessionários e botas de frio, meu arsenal em busca de ar. Sim, sobrevivo - mas sem grandes explosões. Diante do frio a gente poupa energia, mas poupa também devaneios que misturam vento quente no pé do ouvido, o gosto úmido da saliva evaporada saindo do lábio fervendo em chama. Contenho-me no sobretudo marrom, escondida sob todas as coisas que me fazem corar. Há de haver verdade nesse seu corpo silencioso, que me morde sem que você nem precise abrir a boca. PONTO. PARÁGRAGO. (Sete e meia). Há um lugar que é meu, poltrona preta de couro, onde eu sento e permito, sem restrições, que o jogo seja jogado. Do lado de dentro quente e frio são só o começo..

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Recado

Em 18 de Maio de 2012.
Querido ninguém.

Chego na minha paciência, no calmo e no doce, mastigando o prazer de ter o silêncio só para mim. A minha casa está ampla e fria, e eu gosto de sentir por debaixo das cobertas a paz que me trouxe trocar certos móveis de lugar. Aqui tudo é absolutamente meu, até os segredos que flutuam soltos sem mais qualquer tipo de ressalva. Sutiã, cara limpa, meias quentes, chá de maçã e o Garcia Márquez, todos compondo a minha poesia muda cheia de prazer do fim de tarde. Não quero notícias do lado de fora, porque honestamente, nesse momento, tudo que me interessa está aqui, a um palmo de minhas mãos sem anéis. De seres humanos bastamos eu e o senhor de 90 anos com fala latina arrastada.

Sento com as calças largas de um azul desbotado, pingos caindo do cabelo ainda por secar, a parte de cima à mostra para o nada. Experimento espiar uma lembrança que volta e meia me acorda com gosto de beijo e vontade, com língua tentando explicar o que eu nunca entendo. Permaneço entregue à inércia da não urgência dos fatos, e espero o devaneio ir. A gente vive aquilo que é preciso viver, e quando o preciso precisa de mais, a gente se reinventa. Eu ainda não decidi.

Em resposta à licença: Vez em quando escrevo contando com os olhos pequenos de alguém, que se dizia ler os pensamentos, aqueles meus exravagantes em lágrimas. Essa minha pretensão se confunde com uma certa liberdade em poder dizer sem falar, sem precisar ouvir de volta. Ou não ouvir, esperando. Sei que é confuso. Gosto de não ter que emitir sons, nem ter que encarar frente à frente, mas algo em mim desconhecido não me deixa estabelecer de fato um limite. Eu continuo mandando recados, mesmo sem saber. Sai da minha janela, em sinal de saudade nas madrugadas, uma fumacinha tênue cheiro doce e forte, cheiro lírio único em vaso na mesa de vidro, levando um desses recados para alguém sobre quem eu já não sei.

Querido Ninguém,... A partir de agora permito-me, só por hoje, um fim.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Noite escura, leva.

Essa noite mistura tudo que há em mim, turbante azul na cabeça, pés descalços no asfalto, um salto na ponta dos pés para a natureza morta ao redor. Na boca, o gosto maracujá com saudade. Vento quase morno, quase frio, janela aberta, música, luz vermelha, luz da lua. De repente, a minha garganta que não sabia mais gritar explode seu desejo de chegar até aí, seus ouvidos que não me querem ouvir. Eu grito mesmo assim, fazendo desenhos com a mão, com o corpo, e esses cabelos todos livres flutuando minha vontade incontrolável de voar. É tão bom sentir que dói...
Flashes vivos cortam meus sentidos na escuridão, abro os olhos e ainda lá está você puxando o meu pecoço para os seus dentes, o carro parado numa rua dessas qualquer. Voltei aos lugares dos passos tímidos sem mãos dadas, descontruí os medos, imortalizei a perda, e sobrou somente a dança livre, o esvoaçar do vestido longo, a lembrança do vestido que queria ter deitado no seu chão, e permaneceu em mim. Danço para a platéia livre dos viadutos e calçadas, danço para mim mesma, e assim me sinto inteiramente viva.
Divido uma avenida enorme com automóveis desesperados, sussurros surdos, um gato branco que só observa, chegando mais perto. Divido com olhos que sorriem, botas pretas, postes de iluminação romantizando a sujeira urbana da cidade que resolveu, só nesse segundo, parar. Dia bom para os justos, e para os sem vergonha de boa intenção.
Até ela, madrugada, dorme, e leva embora os devaneios concretos por debaixo da roupa, a permissão boa de sentir sem nem que você saiba. Quero um enterro digno para os meus bichos, mas eles insistem em habitar visceralmente meus impulsos impossíveis de conter. Não largo o osso. Quero pra mim o que foi meu, o que foi nosso e ainda existe. Enfurecido e calmo.

domingo, 22 de abril de 2012

Pela ausência de voz.

Deixe-me assim, levada pela inércia, água correndo para buracos fundos escuros. Sem cheiro. Sem cor. Deixe-me quieta nessa bolha de desatenção, onde espia o medo de coisa qualquer, perspectiva de horas em movimento descompassado. Deixe-me parada.
Deixe-me sem notícia, sem memória, sem lembrança. Sem promessa de carinho, nem de amanhecer, nem de amanhã. Quero ficar em silêncio, pois não há beleza na primavera de hoje. Chove um bocadinho, um gole ralo de café, cheio de lágrima, a voz de sabedoria. A voz de um homem que ri, mesmo tendo ciência das dores. Porque acredita. 
Deixe-me estática, meditando pensamentos que não importam mais. Abstenha de opinião, crua. Paz disfarçada de olhos que não querem ver. Deixe-me opaca. Deixe-me secar o que já não escorre mais. Deixe-me debaixo dágua, sem respirar.
Não olhe para mim, nem pronuncie meu nome, porque não há nada a ser exposto. Abra cuidadosamente a caixinha de segredos, retire o que lhe interessa. Deixe-me sem vaidade, pois já não resta propósito algum. Deixe-me cobtemplar apenas a impossibilidade. De longe. 
Deixe-me sem sentir, injeção de anestesia. Deixe-me soluçar em silêncio. Deixe-me viver, por demanda urgente de agr, por estase.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Eu sou o fino tecido que recobre todos os passos do horizonte. Veladamente, fazendo de conta que não há parte ruim. Enganando o próprio destino.
Eu sou a ausência vestida de branco, pálido, turvo. A sequência      de imagens sem voz, o paladar queimado de um café muito quente. Sou aquilo que o forte pegou para escravo. A sentença falha do amanhã, obediência sem olhos e sem roupa.
Eu sou a retidão, a congregação e a paisagem. Tudo junto, misturado. Um terreno farto de não sei. Sou o despedaçar de uma parte que ainda está no anonimato, por entre dedos curtos e falhos - e assim permanecerei. Sou a fadiga e o pão de ló.
Eu sou quem está ao lado do viaduto, à margem de, quem segura as horas com os dentes, as lágrimas com as sobras. Sou o espirro escandaloso às convenções. O que está tão longe que não se enxerga, tão transparente que não se vê. Sou a menor ilha do deserto sem água.
Eu sou a película de chuva retida na janela do quarto, imóvel, existindo só por existir. Sou o pesar dos pesares. Sou o suave veneno que escorre da boca da mágoa. Sou a irmã gêmea da mágoa. Sou o perdão e o propósito.
Sou, eu mesma. Sou e sinto. 

 
Não vejo a cor do dia, a flor do dia, a flor no peito. Daí eu páro por cinco minutos, é o tempo inteiro que tenho de sobra, o quanto eu vivo da vida. Venho pra casa só pra chorar, o João de Deus nem sabe. Meu nome é Maria das Dores, miserável misericórdia essa que prometeram antes deu tirar os sapatos e ajoelhar pra rezar. Ser infeliz não é sina, é somente silêncio. Brinco de adivinhar o dono da posse, quem é esse que me espera na cama todas as noites, quando eu não vou. Eu fecho e abro os olhos, o ponto-e-vírgulas dos dias sem suspiro algum. Nesses sei com convicção que não há ninguém, e me falta o ar.
Tive um filho de parto normal, filho de outra mãe que agora ocupa os meus braços. O rosto ri a dor no corpo, o peso dos dias sem fim. Não há trégua, nem cavalo, só um cachorrinho bem magro, um menino denutrido e essa gente toda que não sabe ler, a não ser o Santinho. Esse mesmo, do pau oco. Serelepe. Pros pecados, e pro que há a mais.
Não vejo nem o restinho do fio do dia, que amanheceu e foi-se embora, passou pelo quarto do lado nas pontas dos pés, e eu nem cheguei a dizer que estava com saudades. O tempo é curto prum cabelo tão grande, não dou conta de trançar, vou pra rua desse jeito, despenteada, porque gritam meu nome com voz de choro, de fome, de desespero. De verdade e mentira juntos, mas eu acredito em tudo, tudinho mesmo, porque meus joelhos agora parecem estar sobre milhos.
A minha prece é prum raio ensolarado batendo no rosto, apesar dessas mãos fracas de agora. Pra onde caiba aconchego e esperança, dia e noite, vida e morte, como Deus quiser, como há de ser. Mas quero que transborde de afeto. Sem que me falte o essencial diante dos olhos. O óbvio. 
Me chamo Maria das Dores, filha da Severina, filha da sorte de ter sido feita eu.

terça-feira, 6 de março de 2012

Aperto

A saudade dói. O não poder dói. O não saber dói. Até o frasco de água em cima da pia, aquele de quando sentia sede, até ele dói. Suavemente, uma dor que transpassa o tempo, come delicadamente as horas, enlaços de memória de algo que foi, e não é mais. O formato da mão, a pintinha nas costas, a lembrança do cheiro - ah, o cheiro é o que mais dói.
O anel folgado no dedo errado dói. O livro com sua dedicatória meio charmosa dói. A foto de um beijo no rosto, desses colados que criança dá (sabe?)... Dói. O som surdo da risada. Sussurando, uma dor que aponta sua presença no despertar da manhã, acorda com um sopro gelado na nuca e se mantém ao lado durante todo o dia - no escovar dos dentes em frente ao espelho, no descer das escadas de mil degraus, no entrar nos lugares distribuindo bom-dias vazios. O cotidiano vazio. O esperar vazio.
Hoje eu dei comida para a minha dor, fiz um prato farto e ofereci, mastigando lentamente a ferida que me está aberta. Hoje eu ouvi músicas, dessas próprias para a ocasião, solenemente ocupei meus espaços de pensamento com a falta, a lembrança dos pequenos gestos, esses doces detalhes, o pacto de "para sempre" derretido como manteiga em dias de extremo calor. Como esses últimos dois. Hoje, principalmente hoje, eu deixei que ela entrasse e ditasse suas próprias vontades. Sem solidariedade, ela se apoderou do que era seu por direito, e ficou.

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Numa lacuna perdida no tempo fez-se uma pausa para a vida, poderosa vida, imponente e cheia de mistérios. Ainda agora ganhei um sabonetinho sabor neném nascido nos meus braços. Sabor sorriso. Devorei o gosto açucarado de esperança que esse momento me trouxe, sem a menor pretensão. Boaventura a minha, desejar ser feliz - feliz, feliz! Porque a dor existe, mas até ela é pequena demais diante dos 47 centímetros clichês de milagre que acabei de apresentar ao mundo. Honestamente, eu acredito.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Extran(h)o

Não sei se vive, se ainda respira com esses olhinhos pequenos cor de mar. Não sei mesmo, se tem aprendido outro idioma, ou se largou a idéia de conhecer o mundo e voltou pro emprego velho de sempre. O emprego que não te fazia sorrir. Não sei se está feliz, se ainda fotografa os gatinhos perdidos na rua, se ainda tem medo. Não sei se você mesmo não se confunde com um desses gatinhos sem rumo da rua, espiando cantos que te façam sentir seguro, sem frio. Por entre pernas alheias, talvez.  
Não sei se reencontrou aquela moça com quem trocava notícias, aquela que estava apaixonada por você há mais de um ano e se mantinha à espera. Não sei se procurou um médico, como prometeu sob os lençóis de constrangimento, se experimentou um hummus que finalmente fosse do seu agrado, se comeu o curry com gosto de lar. Não sei se tem sentido saudades, palavra que conheceu um dia desses, e que talvez ainda não tenha aprendido a usar. Se lavou as cuecas. Se cortou o cabelo. Se assistiu à final daquele campeonato na TV.
...
Eu sei que você tem tido boas tardes de Sábado. Sei que tem praticado esporte, encontrado pessoas que te querem de braços abertos, tem usado shorts limpos, roupas novas, o mesmo cabelo enorme sem corte da última vez que nos vimos, antes de eu desejar tesouras bem afiadas para picotá-los sem dó. Sei que tem mantido a barba aparada. Tem mantido essa altura desproporcional, que chega a ser doce e engraçada. Tem parecido mais você que nunca. Sei disso e mais um pouco, bem pouco mesmo, clandestina. Porque você não me contou, talvez esqueceu de contar, talvez não quis me deixar saber. Tento não brincar de adivinhar, porque nunca fui exatamente boa nesse jogo de adivinhação, e quando se perde mais que a terceira vez, dói. E daí a gente aprende. Lida com o não saber. E continua a vida não sabendo.
Não sei se você ainda sabe o meu nome sem precisar checar em alguma caderneta jogada perto do resto das memórias. Se existiu algo de real ou se não passou apenas de um sonho bom. Não sei, mas aceito a condição que me permite acreditar o suficiente para aquecer a alma. Se há de haver alguma coisa, que eu desfrute do subterfúgio que agora me olha discreto de longe com seus olhinhos cor de mar... Porque sobre isso eu sei.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Volta

Estou provando o gosto do doce exagerado, do deleite que se autodenomina deleite sem nenhuma vergonha na cara. No fundo, você não espera esse sentimento, que só aflora mesmo depois da primeira cerveja tomada direito da garrafa. Após todas as outras, você esquece simplesmente tudo. Não há certeza alguma em nenhuma dessas certezas que a vida me dá. Surpreendo-me menina escrevendo poesias com rimas de dor-amor, desenhando palmeiras em cadernos de desconhecidos. Será que eu já sabia? 
O livro está pela metade, o percurso pela metade, eu voltando pela metade. Alguém ficou com uma parte justa de mim, mas migalhas estão por todos os lugares. Tenho medo do que está por vir, porque simplesmente não sei. Estou a caminho de sentimentos que nunca ouvi falar, exposta à minha própria possibilidade. Um provador farto de decisões, e eu não sei tomá-las. Ao menos,  convenço-me por ora que não.
Quando chegar, ansiosa estou, vou direto pedir a benção ao pé da terra de onde brota o que há de melhor em mim. Saudade. No meu samba, sei, hei de encontrar respostas...

Gundaydin

Gunaydin

A manhã da antecipação me pega ainda pouco suculenta, mas cheia de intenção. Tenho tempo ilimitado para um desfrute da imaginação. Óculos de sol descolados, olhos marcados com lápis escuro, jaqueta preta de couro justa demais - onde estou com a cabeça? Penso apenas em engolir a mim mesma, pequeninos pedacinhos de prazer por ser quem eu sou, por me ter só pra mim. Só por hoje.
Percorro os espaços atenta à toda inspiração, o cheiro dos pós multicoloridos em caixinhas de madeira, a oração cantada em autofalantes com uma voz forte e trêmula, as pessoas seguindo o mesmo caminho que o meu, oferecendo suas próprias sortes. Retribuo sorrisos, trapaceio a língua e brinco de poder habitar confortavelmente aquilo que não é meu, mas me permeia. 
Sei que não estou pronta o suficiente para que me permitam voltar. Deveriam conter-me enquanto há tempo, porque meu corpo ainda borbulha do mal cozido, mal passado, à espera de mais. Não é hora, e eu sei, constato delicadamente à sombra do lenço suave cor coral enrolado no pescoço, enquanto sufoco do que sobra e é vazio.   
A vida percorre seus grandes portões de chegada e saída, eu obedeço os rituais todos com os dedos cruzados e o coração a mil. Se houver alguém chamado Destino olhando por mim, sussurro baixinho o meu desejo de paz. Ela e nada além. 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Azul

Esse lugar me fez chorar. Estou sentada num tapete cor vermelho e azul, flores desenhadas delicadamente para mostrar como é fértil e rica a vida. Não sei explicar esse sentir que me toma, sei apenas que é forte o suficiente para me fazer calar e escorrer. Aqui vejo Deus, posso tocá-lo com os olhos, beijar sua mão. É maior do que qualquer coisa que eu já tenha experimentado e tenha ciência do nome.
De lenço na cabeça, sapatos numa sacola ao lado, encontro em mim um respeito por algo que eu nem sabia existir. Faço uma oração pedindo apenas que meu coração se eleve ao alto, ao ponto mais alto que houver nessa Terra. Que ele saiba cantar a cada manhã. Que se derrame inteiro de amor. 
Há muitos pés com meias coloridas circulando curiosas por esse lugar Azul. Quem são essas pessoas, qual a fé que as faz andar? Ele, qualquer que seja o Seu nome, é um só, e ocupa todos os espaços. 
Tenho tanta sorte que nem consigo acreditar. Engrandeço-me ao descobrir ainda dentro de mim um sentimento desse tamanho gigante. Agora percebo quanto falta fazia ver o mundo através de olhos assim, encantados, cheios de paixão. 
A vida é mais que boa nessas horas.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Enquanto dorme o sol

Faça-me bonita. Esse é o pedido ao pé do ouvido, e antes mesmo do primeiro traço, já se sabia o que iria virar. Essa é a pitada da sorte, a velha e boa carta na manga. Sinto saudades de estar confortavelmente nua com alguém, inteiramente à mostra sem nem perceber. Sem nenhuma intenção, só a permissão em poder ser, o grande prazer da imperfeição humana. Um número de telefone que não esteja no meio de outros muitos, o banco de trás de um carro qualquer alugado no meio de uma tempestade de pedras de gelo caindo enfurecidas do céu. Flashes congelados insistem nervosos em habitar meus desejos, premissas de pensamentos. Eu os alimento fartamente com pedaços inteiros de recordação.
Um velho turco leu a minha sorte na borra do café que tomei a goles calmos. Disse que via pés que caminhavam para lugares distantes, e eu ingeri, além do café, toda a poesia contida nele. Gostei de me ver por trás dos passos largos largados mundo afora. Dentro do peito, um coração com batidas fortes, esperando pela manhã que há de trazer mais. Muito mais.
Quando penso onde estive, com quem estive, enxergo-me projetada, eu mesma, no meu tamanho polegar, minhas pernas curtas cheias de pressa em desacortinar todo o tipo de mistério. Lembro-me especialmente dos bons, com mordiscadas sapecas no lábio inferior da boca, uma imitação chinesa da Paris anos 20, uma dança convulsiva na casa de um senhor de bastante idade. A poesia branca, azul, aurora e cor de terra, toda ela contida numa caligrafia delicadamente escrita com açúcar e mel.
Na luz do entardecer, à beira do mundo inteiro que se colore à minha frente, sinto que sou, ali, para os pincéis pretos e brancos todos gastos, beleza e inspiração. Faça-me dormir em seu colo, e acordar com hálito doce de maçã da manhã.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

+44

Hoje eu senti que queria você do meu lado, mas não podia sentir saudades. Precisei de uma estranha para me dizer o quão crítica eu sou comigo mesma. Como se eu não soubesse. Tenho tido noites agitadas, mas elas não são suficientes para me fazer acordar. São rios de imagens que me passam continuamente, não respeitam minha idéia pré fabricada de tempo e espaço, e me lembram o quanto estou submersa, sem oxigênio. Hoje é um daqueles dias em que tudo está rarefeito. Dias em que eu simplesmente perco a voz.
Alguém de longe me liga e eu sinto uma proximidade estranha. Quem está ao lado parece distante demais, e eu desejo apenas mergulhar, fundo o suficiente pra não ouvir. Quero deixar cair, mas ela insiste em ficar tocando-me o rosto de forma a cristalizar-se, delicadamente sufocante. Não posso mais mentir, nem fingir, ou correr. A vida pede sua parte, e eu pago com o pouco que tenho nos bolsos de trás dos jeans sujos de terra. Crio o enfeite das horas para comer quando estiver sozinha, trancada em mim mesma pelos fones de ouvido. Faz tempo que não me cantam pertinho aquela oração, e eu já sinto falta dela. 
Minha inspiração é fulgás, assim como meu paladar, minha lista de presentes, meus diários de figurinhas. A moça bonita me oferece chicletes, eu aceito para parecer educada, mas no fim, o gosto doce de laranja me cai satisfatoriamente bem, como se soubesse da minha necessidade de algo mais. A avenida é longa, mas o tempo ainda não é o bastante. A saudade foi desgastada, descongelou-se por entre as horas, e o que restou foi apenas a vontade de nada. Nem um pouco. Lentas mordidas aguardam meio amanhecer num outro continente. A outra metade continuará por aqui, em busca.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Despedaço

Todos os seus CDS são meus. E as caixinhas de música, os despertares cheios de preguiça, a cafeteira que não faz café. Toda a sua intenção inexata por qualquer uma dessas coisas. Os pratos brancos, porcelana dada de presente, talvez presente de vó, além do carrinho de feira, do pinguim de geladeira.
Toda a sua caligrafia pertence às minhas dedicatórias, meus livros em sua estante, minha pele em seu lençol queimado com bituca de cigarro. O meu Chico que era seu até eu gostar. O seu hábito que virou meu, porque dele eu gostei. Tudo muito misturado num universo que parecia não ter nome nem fim.
Suas botas nos meus pés, sua gravata e nada mais. Os anéis dos seus dedinhos pequenos, menores que os meus dedinhos pequenos sempre frios. Sua jaqueta que hoje me veste um vestido, seu inglês perfeito, meu francês só na língua e nos olhos.
Talvez eu fique por aqui.
Comprei um cachecol cheio de cor, pus um pouco de cor nas bochehas rosadas. Lá fora há muito cinza, em harmonia ao que me espia. À espera de coragem. Preciso de uma caixa de papelão onde caibam Cds, botas, lágrimas e saudade...

Pausa para indagação

Quem é essa estranha, essa desconhecida, que nem aparece aqui agora para me fazer entender? Quem é essa louca que me acorda com um beijo meio seco, meio molhado, me escreve no corpo marcas de coisas das quais não lembro, e desaparece no suspiro do cheiro café da manhã? Quem é esse ser dúbio cheio de mãos, caras, bocas, que me invade violentamente, me arranca roupas, chupa os meus desejos, depois deixa só o pó, o bagaço? Amargo. Cadê você aqui agora, quando é cedo, arde e faz frio? Sentada de frente à eternidade, estou sozinha, nua, quieta e sem voz. Comeu os meus braços ontem à noite, e agora estou simplesmente atada. Parada. Imóvel.
Você, que permite que o indizível fique no não dito, não questiona, só vive. Sou só inveja. Quem é você? 

Tanuit

Acordo com a voz pesada de 1958, pela janela a partitura infinita cor flocos de neve. Ainda estou zonza do despertar tão longe. A roupa que me veste melhor é a paixão, e eu tenho medo de sair agora daqui e passar muito frio. Sei que estou nua. Meus olhos semicerrados esperam a hora de ter de partir, e eu os confundo com tanta luz e estática.
Mal cheguei e já encontrei cabelos que vivem apenas para que eu os olhe. Eros passou antes de mim por aqui. Presto discreta atenção neles e em todo o resto. No fundo, os cabelos só tornam tudo mais óbvio. Nem lembro mais dos outros olhos, da outra boca de despedida, enrolada língua. Nem espero mais outra vida. 
Sou a única habitante desse lugar, além das demais vozes que insistem em competir umas com as outras, mas é o silêncio quem vence. Eu queimo ao nada. Ocorre-me, entretanto, a possibilidade de que talvez eu nao seja interessante o bastante, e isso, apenas por hoje, honestamente me basta. Faz tanto frio que até meu pensamento se esquiva em responder. Dois pesos para cinco, talvez seis, muitas medidas. Tantas que já perdi a conta. A minha fome só ronca, e nunca passa. Eu como! 
Alguém com sotaque elegante, alguém com uma opinião sobre todas as coisas, alguém que não deixa o cachorro da rua me morder. Tudo misturado com muito tempero, pedaços fritos de frango, uma bebida quente. Com sorte, uma atitude mais leve sobre mim mesma, sobre a idéia de tempo, sobre o tamanho das horas. Nada se perde. Cultivo, regando delicadamente e recolhendo as sobras, a minha motivação.

A la Véronique



Dia novo, gosto do vinho sem nome misturado à noite. Cigarro apimentado, porque Paris está logo aqui, e eu me descobri outro alguém. Chamam por um nome, madrugada dentro, e eu respondo com a boca, com os olhos, com a língua, com as mãos. Esse nome nem é meu. Como a fumaça que sai lânguida pelo ar, tudo em mim se dissolve. Hoje sinto apenas o resquício distante do cheiro, vaga lembrança do deleite charmoso cheio de pretensão, cheio de arte. Avantajado. Lúcido devaneio... Saudade.
Minha roupa de baixo revela além do fato, mistério. Compro mais cerveja, enquanto tentam adivinhar minha identidade. Sou nada óbvia, inteiramente explícita. Pode tocar. Tiro uma fotografia borrada só para dizer que quero recordar o que quer seja isso nos vinte minutos seguintes. Honestamente, não faço a menor questão.
Arranho pelas costas um aviso escravo de que irei ao sacrifício. Nuca. Pescoço por entre os dentes. Agora mesmo. E ponto final.
Decido trêmula que já tive o suficiente, está na hora de mais, mais uma vez. Nada de quartos frios de hotel com camas que aguardam afeto. Nada de luvas tamanho maior emprestadas para que se aqueça o tantinho de vontade. Nada de espera pelo que não vem, ou pelo que vem clichê e serve apenas para que se escreva ao som de um cantor novidade. Não é absolutamente sobre lágrimas e papel toalha que estou falando, fico apenas com o drama, um daqueles de bom tamanho. Meu ar puro é assim. E esse é só o seu começo.
Amanhece nevando até as canelas, tão infinitamente branco que dói. Tudo contınuará do jeito que está, a nuvem clara vai perder sua cor, e ela, Véronique, vai evaporar. Digo adeus sem palavras. Braços espreguiçarão para longe as lembranças da madrugada aquecida de poesia. Tatuaram-me, porém, uma idéia, e tenho a leve impressão de que de hoje em diante nunca mais serei a mesma.

Na caverna

Habita em mim agora um desejo de fechar os olhos e ficar. Parada. Habita em mim uma preguiça que vem do ventre, resquício dos dias em que banhos e cama eram um trabalho difícil demais! Estou de óculos e gosto de pasta de dente na boca, hálito quente e leve irritação com o brilho intenso da manhã. 
Preciso de um banho, para lavar até isso. Um banho que tire mais. Preciso de um sabonete barato sem cheiro, sem imaginação, sem promessa ou intenção qualquer. Apenas a existência tênue de fazer sair, sutilmente, o resto de tudo que é mais de um, o excesso. Estou pagando minha herança inteira de postais de lugares aos quais nunca fui, porque sei que tenho bagagem demais. Tenho o sabor do que sobra na palma da minha mão, o ar fresco do discretamente maior. Não cabe dentro.
Despejo a rígida sensação de que depois de agora o que insistir em ficar será algo imutável. Permito-me uma fotografia para recordação, e após ela, cinco minutos de ciência sobre o que de fato é. Fica sempre o inexplicável.
Após meia pílula de sono, estou pronta a deixar por ora tamanha indagação. Banho, pasta de dente, óculos de grau e imaginação. Dedos cruzados, uma xícara de chá de maçã, meia barra de chocolate Milka. Na hora certa eu vou saber. 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Superfície

De repente os dias e as noites deixaram de se confundir uns com os outros. A urgência é por um cigarro entre os dedos, e a pose que acompanha ele. Placas na beira da estrada espiam curiosas o sabor que há por cima da minha boca. É vontade. Vontade de mais.
Meu sonho antes de morrer é fazer o tipo de coisa que se faz quando se está com saudade. Pena que o tempo é um recurso limitado. Ou pelo menos é o que têm me dito. A minha eternidade se dá agora sentada em frente aos copos misturados com bebidas de diferentes cores, uma azeitona com um recheio de cheiro forte, talvez uma ou duas promessas para logo menos. Sou inteira sal, pimenta e cuminho.
Além de mistério.
Na cama pequena, horas menores ainda compõem meu restrito infinito de possibilidades. Ao meu alcance um livro de cabeceira com umas três frases marcadas de azul bebê, aquecedor roncando sua preguiça essencialmente monótona, nada na TV. Nada no corpo também, nem beijos, nem frases, nem pressa. A seda levemente pretenciosa lembra o quão improvável é essa situação, e em sendo assim, o que me resta é deixar manchar com um gole de vinho barato e farto. Ou um café forte.
A cômoda reflete o verde musgo antigo das gavetas, sintoma de maturidade, de que é hora de crescer. Basta ainda pintar as unhas de vermelho, o batom vermelho nos lábios, os saltos altos, a atitude clichê. Não sei ao certo se isso tudo é para mim, ao menos não agora - gosto das botas verde musgo sujas de barro, do jeans barato desbotado, da boina usada meio de lado. Gosto da idéia de poder, eu mesma, ainda ser gasta na superfície.
Belisca-me a mordida de realidade que se fará essencial após a próxima parada. Fruta madura na feira, noites cheias de tarefas sérias demais, tabela a cumprir. Alguém com quem ter uma conversa tão séria quanto a tarefa. Qualquer outro lugar vai passar a ser inalcançavelmente longe, e eu vou nadar, sem dar mergulhos perigosamente arriscados, à procura de um paraíso justo o suficiente para me deixar... Ser.
Ora, pois, assim se faz a vida! No curto espaço de tempo em que duram meu cigarro, a pose e a poesia. Qualquer outra coisa é apenas parêntesis. 

Agridoce

Restos de sentimentos espalhados pelas minhas aretas. Nada inteiro, tudo de ontem, ou antes de ontem, ou muito tempo atrás. Picadas de abelha na pele macia, curva maliciosa que peca em se insinuar. Eu como todo o mel. Cansada estou de deixar para depois. Tento voltar a dias que não eram assim, nada de céu, nem de inferno, apenas a tênue névoa de escuridão.
A gente aprende que deve ter bastante cuidado até mesmo para olhar. Eu, antes mesmo de olhar, já vou entrando. Acomodando-me por entre as paredes de pedra vermelha, tapetes, incensos, toda a umidade misturada à solidão. Enquanto penso e espero, sinto minhas mãos tomando forma de gota, escorro por entre costas de promessas de amanhã, fluidifico-me. Como se fosse algum tipo de segredo, experimento o chá sabor calor, hábito nada meu, mas que como todo o resto, por hoje já é minha segunda pele. Não sei o que quero, exceto toda a parte que eu sei, e não quero ouvir.
Há pedaços aqui pela metade, o tempo que crava seu destino com dentes afiados e não deixa escapar. Eu escrevo com meus próprios dedos, da mesma forma que ponho tudo na boca, de uma vez só, lambendo até onde há. Ainda sinto-me flutuante, dissolvida entre o existir e a probabilidade. A minha mente é uma casa, e nela moram pedaços de porém. Exalo sabor por todos os poros, e ele é agridoce. 

Teatrando

Por entre essas pedras, tantos as claras quanto as escuras grosseiramente gastas pelo tempo, escuto o silêncio de todas as pernas nervosas que viviam aqui. Se eu fechar os olhos e só ouvir, posso sentir as vozes entrando pelos meus ouvidos, as máscaras de riso e choro que cobriam os rostos, o tom meio teatral mesmo fora dos palcos. Há um cheiro de nada, e esse nada me remete aos dias antes de qualquer coisa que sei existir.
Saio do mergulho pronta a encarar qualquer tipo de negociação. Tropeço sorrisos por entre a gargalha extravagante que ecoa pelo tempo de "para sempre"; esse para sempre de agora.
Mandaram-me uma notícia, e ela urge! Vou comprar uma bicicleta e pedalar todo o caminho até Roma, porque eu tenho boca, e também porque disseram que lá há restos de vidas de um monte de gente. Porque há algo a se resgatar. Algo a se descobrir. E porque há uma estrada para outro lugar adiante.

31

Ele tem aqueles olhos que parecem que foram feitos de sorrir, mas que olham cheios de mistério. Eu precisava falar, e após a terceira, eu falei. Agora simplesmente fecho os meus olhos e danço conforme a batida da música que parece me sorrir com o canto da boca. Mon amour, ela diz. Amanhã já nem importa mais. 
Barris inteiros dividem o som das gargalhadas e o mastigar de azeitonas. Há a mesa e o caminho inteiro entre dois continentes. Minhas mãos não tocam além de muito longe, nem vão tocar, enquanto meus dedos congelam dentro da distância fria que naturalmente resolveu se impor. Ela, com seu desejo quase próprio. Tento não pensar para além do essencial.
Hoje já é depois do dia seguinte, e a poesia simplesmente se dissipou em meio ao leve ar de curta irritação. Os olhos agora contêm rugas mal disfarçadas, mal contadas pelo tempo. Não há desejo de partilhar, ou dividir, não há desejo nem ao menos de emprestar os fones de ouvido para que saiba a música que me faz invisivelmente sorrir. É simplesmente tarde, a minha paciência dormiu no meio do caminho e resolveu não acordar nunca mais.
Conto horas dentro do chacoalhar escorregadio da estrada, sem ter o menor poder de decisão. Há uma longa espera oscilante sobre o que exatamente sentir. Pouco me importa. Quem vai dormir agora sou eu...

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Onde canta o sabiá

A minha terra tem palmeiras, tem guardachuvinhas em copos de bebida cor limão, tem ovos mexidos no café da manhã. Tem um violão que ri e chora, e se mistura ao corpo da mulher despretenciosa, saia florida e cachos generosos no cabelo, um avantajado sorriso pedindo uma noite de estrelas. Mulher de cor escura e pele quente. Um sabor maresia nos ombros largos, o desfrute da madrugada clara. Sem medo. Sem perda nem espera. Só o que há e é real, sem amanhã.
A minha terra tem sabiá e a saborosa feijoada do Domingo em família, uma ilha cheia de sol e preguiça. Tem também abacaxi com hortelã batidos fresquinhos, e as batatas roxinhas da mãe da Adélia. Tem um guri que levanta antes do raio pensar em acordar, e sai por aí cantando com suas curtas pernas, seus passos largos. Seus heróis de papelão, suas refeições de frutas roubadas do pé. Ouve ao longe gritos de corre-menino, mas ainda assim, insiste em controlar as horas boas da vida.
A minha terra tem o mar calminho pela janela do quarto, três ou quartos jeitos de se dizer que sente falta, ou sente saudade, um Senhor dos grandes abençoando qualquer um que simplesmente abra os braços. Tem um monte de homens com pernas grossas, ou pernas de pau, fazendo não sei exatamente o quê atrás de uma bola, e meninas novinhas adquirindo marcas deixadas pelo sol extravagante no seus corpinhos esbeltos, esculturais. Tem a voz daquele moço, que já não é tão moço mais, mas que ainda seduz com seus imcríveis olhos azuis. Essa minha terra, especialmente ela, sagrada e profana, cheia de mistérios, som e poesia.
A minha terra tem meu nome cravado no solo, raiz fixa e forte, frondosa cobertura que me deixa espreguiçar na sombra. Tem o gosto do meu suor, do meu perfume importado, do meu cheiro de todo dia pela manhã. Tem meus sorrisos e meus apertos, minha habilidosa capacidade de não saber, nunca, mas sentir. Tem todas as minhas paixões intensamente, exageradamente, deliciosamente vividas. Só lá sou o que há de melhor para ser em mim.                       
Lá, onde canta o sabiá. 

Road

Imersa numa maravilha que, de tão branca, chega a ser azul. É uma rota sem fim... Do céu caem pedaços de luz e som, flocos de novidade. É bom não estar só no meio da imensidão.
Aqui estamos, apostando as fichas nas possibilidades. Sem planos, sem nem ao menos conhecimento de causa; apenas uma aquecida chama de nos percebermos vivos. Tentando não levar o relógio e sua batida inabalável tão a sério, me pego com mãos dentro de um ninho, aninhando a mim mesma em ombros que acabei de descobrir. Todos partilhando do mesmo sentimento excitante e mágico do desconhecido que está logo ali, cinco minutos à frente.
Há no meio disso tudo um pouco do de sempre, cansado e velho, mas há também a promessa desse sabor antes nunca experimentado. Vou apostar no doce que pode escorrer pelo canto da minha boca, lambuzar os meus dedos e fazer com que eu volte a ser ridicularmente criança. Não sirvo para essa coisa toda de ser grande, maior ainda. É simplesmente uma roupa justa demais para o meu desejo de ser livre.
(...com a música certa até meus pensamentos fazem todo sentido....)

Sol e som

É como se aqui eu simplesmente pudesse ter tudo. Ser tudo. E a vida não tivesse pressa, porque antes dela o sol precisa nascer e se pôr, sem nenhum mistério, apenas magia. Uma boa comida vinda do mar, com muita manteiga e muita sorte. É assim que eu devoro o último raio de sol. As cores por trás das lentes, à frente dos olhos, as milhares de faíscas borbulhando desejos. Com os pés congelados, nada como ter o coração aquecido pela incrível obra de arte que a natureza insiste em construir. Um deleite bom de simplesmente apreciar, a gratidão pelo pulsar ritmico de cada dia. 
No meio da noite, silêncio e madrugada viram dois lobos grandes, de ruído cansado. Melodia triste, com cheiro de estrada, de botas sujas de barro. Nessas horas, a solidão faz todo o sentido. Uma gaita chora os devanios do negro vento que corre sonoro avisando sua chegada, sua partida. Nada fica. Concluo poeticamente o pensamento dos poderosos deuses do olimpo - logo ali:  é uma espera, uma eterna busca pelo amanhecer... 

... Entra por debaixo da porta um cheiro de pão fresco e quente. Sinto que já é hora de abrí-la. 

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Tesekur ederim

É possível se ter todas as horas agora. Aproveito meu instante para simplesmente ver, olhar os olhos que falam todas as histórias através de rugas cobertas por pedaços de pano preto. Enquanto sinto, peço para não mais ser, nunca mais, tão dura comigo mesma. A verdade é que só aqueles olhos misteriosos sabem...
Gente silenciosa que engrandece a alma só por existir. Por passar entre os outros, tentando parecer não estar ali, mas impondo suntuosamente a sua presença. Eu praticamento respondo em reverência ao chamado inevitável da oração cantada em forma de música trêmula viajante pelos autofalantes. Na voz de um homem que deve, sim, ter bigodes, deve ter uma expressão forte, deve certamente usar aquele chapéu. Não que sejam todos iguais. Simplesmente por serem únicos nas suas formas de pertencer. Estou envolvida ao extremo. 
Eu, pernas pequenas, surpreendo-me ainda com uma enorme percepção de estranhamento sobre quem eu sou. Nada faz sentido - apenas a potente sensação de poder ser. Nesse pedaço fechado de parte do mundo em que me encontro agora correm soltos pelo ar os sentimentos que me devoram sutilmente, sem nenhuma pretensão de se fazerem compreender. Para além da necessidade de estendimento está o que realmente é. Hoje e há milênios...

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

Chamado

Quero que venha logo, entre e sente nas cadeiras, nas almofadas jogadas pelo chão, no balancinho cor de rosa. Quero que invada todos os cantos, tire os sapatos, sinta-se à vontade para fazer disso aqui, sua moradia.. Experimente os perfumes. Coma os sorvetes no congelador para dias que não mais existirão. Troque as lâmpadas do banheiro, lave os pratos, suje os pratos, compre outro suco de laranja. Pode colorir as paredes frias com quadros de não sei quem. Pode mudar o guarda roupa. Pode levar embora o saco cheio de lixo. Faça o que quiser, contanto que venha aqui pertinho, e não saia mais. Habite.

Paz, à espera de você...

Sem nome

Ela é toda peito, pulso, ela inteira, o seu inferno, seu punho fechado. Ela é aguardente, mas desce doce, por dentro ainda chama baixinho, sussuro no ouvido. Ela pede que volte, mas volte logo. A madrugrada fria dissolve o nome, enquanto mantém o ar insolúvel do querer bem...

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Cenário

Faz tempo que não escrevo. Letras esgarçadas sob uma caneta dourada, assim, bonita. Quem vê até pensa. Presente de alguém que queria mostrar qualquer coisa de orgulho, talvez um pouco de amor. É o que eu tento pensar. Para falar a verdade, faz tempo que eu nem respiro.
O vento entra frio pela janela grande, traz o ruído dos veículos apressados, o pensamento da espera. Meu mundo gira em torno de uma mesa de madeira seca e clara, sem cheiro, sem vida, sem a menor ciência de si mesma. Somos eu e a madeira, gêmeas da mesma mãe. Agora aqui, natureza morta.
Faz tempo que não sorrio, que sou uma máquina registradora daquelas de supermercado. Alguém aperta o botão e eu sigo fazendo o que tenho que fazer, meu trabalho senso comum nessa vida (grande promissora vida...!). A obviedade toma minha boca, sai através das minhas frases sem poesia. Sem resquício do peito em chama. Sem nem tremor dos dias inseguros em que tudo era fonte de imensidão e alma. Resta eu, sóbria, na sombra.
A caneta repousa na mesa de madeira, ouve a minha respiração quase ausente, meu estômago dolorido do vazio, olhos doloridos do vazio. Toda a melancolia. A voz da música bonita toma o seu rumo, segue o canal pelos meus ouvidos tentando alcançar o coração acanhado- mas não há espaço suficiente para me deixar sentir. Deixo, então, que saia pela janela grande, levada pelo vento agora mais frio, ao encontro deserto da madrugada sem roupa no corpo.
Faz tempo que não me seguram a mão, daquele jeito para não soltar mais. Aperto entre os dedos a caneta dourada, repouso a cabeça na mesa de madeira clara, e misturo-me ao cenário estanque de vida sem arte. 
Lá dentro ainda arde. E dói.