sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Divã 1/2

Não, não, não. Eu tento manter minha posição, manter uma pose. Tento te convencer de que estou certa, que sua teimosia coloca a gente num abismo. Bato o pé, viro as costas. Choro. Elaboro. Isso tudo pra mim é uma grande desculpa.
Será que é mesmo tão difícil? A verdade é que eu mesma odeio enxergar, odeio sentir um impulso maior do que o meu direito de pedir. Eu queria só pra mim, mais até do que ter inteiro. Não me bastaria só ter inteiro. Eu queria tudo e ainda mais, queria o meu desejo irracional de não dividir. Porque cada vez que via sorrindo um riso que não era meu, sentia mais longe de mim.
Louca.
Depois dessa confissão, preciso dizer, a loucura se esvaiu. Um suspiro aliviado, por favor. É, eu sei, a gente aprende a controlar nossos impulsos ridículos de agressividade. E aceita que pra ser normal precisa concordar com os limites sociais das relações. A arte da sutileza – fazer comentários simpáticos sobre alguém, dizer que sentiu muito não ter estado presente naquela ocasião. Um blá blá blá mentiroso, quando a verdade é bem mais feia. Problema de cada um – todo mundo é, e não se fala mais nisso.
...Nossa, como eu tou mal-humorada hoje!

domingo, 6 de dezembro de 2009

Vermelho



Vermelho cor de sangue, cor de rosa, cor de língua. Vermelho de sapato, de telhado, de maçã envenenada. Vermelho batom. Vermelho da camiseta da farda de trabalho, da lingerie sensual da vizinha, da parede do quarto de motel. Vermelho lápis de colorir e molho de macarrão. Vermelho lataria do carro velho, vermelho do ônibus pro outro lado da cidade, vermelho da Fórmula 1. Vermelho do esmalte descascando no dedão do pé. Rio Vermelho. Barão Vermelho. Chapeuzinho Vermelho. Boi Garantido, Parintins. Vermelho cereja em cima do bolo de chocolate, no cetim do gorro do Papai Noel. Mar vermelho, valete copeta, dama de ouro. Vermelho agridoce. Vermelho pigmento, corante, solvente, luz primária. Mucosa. Vermelho jambo, claro, fosco, pálido, encorpado, escuro, amplo, fechado, vermelho e ponto final. Cor de fogo e cor que queima. Tapete vermelho, paladar. Vermelho do vidro, do granito, do picho, do patuá. Vermelho do lencinho perfumado da vovó, da cortina florida da varanda, do sorvete de frutas vermelhas. Vermelho Bolchevista. Vermelho do laço, do cadarço, da bochecha no embaraço. Vermelho na bandeira do Japão, no Manchester e no Inter, na taca bem servida do Manhattan. Vermelho na capa do livro da luxúria. Amarrado na cintura no San Fermín. Na estola do padre na Quaresma. Vermelho marcando a pele do pescoço, marcando o arranhão da unha no outro, marcando o rubor da exaustão. Vermelho em pontinhos múltiplos no corpo inteiro do moleque, na nota ruim no boletim. Vermelho gourmet. Vermelho morango, rubi, framboesa, e também coração. Infravermelho. Olhos e beijos. No céu soturno, crepúsculo. Na discromopsia, tom de verde. No dia-a-dia, tomate. Rouge, red, rot, rojo. VErmell. Cinta liga. Vermelho de alerta, de sinal fechado, de parar, proibido parar. Vermelho aquarela, hidrocor, tinta na tela, música da Mata. Vermelho paixão, emoção, explosão, irritação. Vermelho vestido de festa, saia garança, boina francesa. Víscera. Pimenta. Pôr do sol. Languidez. Catchup. Vermelho de metila, de esclera, de espinha e queimadura no fogão. Vermelho veludo. Joaninha. Embrulho pra presente. Vermelho cranberry, Campari e chá pra emagrecer. Vermelho carne, vermelho desejo. Vermelho cor de sangue, cor de gente, cor de vida.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Nessa noite

O tom parece definitivo, como uma sentença da qual não posso fugir. Nessas horas o passado me invade como um punhal, e eu sinto rasgar fundo, tão fundo que me faz entorpecer. Desisto de lutar e me deixo sentir. Há mais por trás do que eu acreditava existir, e agora tudo borbulha na superfície. Minhas mãos estão fracas e eu descubro ter ossos de vidro. Tudo quebra num piscar de olhos, meus ossos quebram, a mentira que eu me inventei quebra, o ar indiferente se estilhaça em mil pedaços no chão. Algo me toma sem me dar escolha, sem pedir licença, e por fim, o meu estômago dói e o meu corpo está em chamas. A fadiga é insuportável, mas eu estou cansada mesmo é de não encarar. A verdade é posta, e eu tenho fome. A verdade é farta, por mais que eu tenha medo. O prato está à mesa e com ele, o convite à vida.
(...Mas ainda assim, aqui no 15º andar não há paredes, e eu não alcanço as mãos.)
Quando todas as luzes se apagam, tenho a sensação de que o mundo dorme, de que tudo finalmente acabou. Será que eu vou ter paz? Abro os braços e fecho os olhos, deixando o vento sentir minha pele. Nessa hora, eu faço meus pedidos. Alguém me disse que de ossos de vidro brotavam asas.