quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Enquanto andava na rua

Enquanto andava na rua, tinha a certeza dos sentimentos da rotina (esses que todo mundo já conhece). De repente, meus lábios arquearam para cima, ensaiando um riso involuntário. Abaixei a cabeça, fingi uma falsa concentração e apertei o passo, como se com vergonha daquela descaração inapropriada e sem sentido que acabara de me tomar. Onde já se viu, sair sorrindo por aí sem sequer saber o motivo! Coisa de gente doida, com um parafuso a menos, gente que não regula bem da cabeça. Definitivamente, eu não estava normal. Fui pega desprevenida, como se um vento tivesse passado e levantado a minha saia bem em frente à obra da esquina. Raio de sensação mais esquisita, vontade de abrir um sorriso no meio do dia, sem no mínimo uma explicação... Quem foi que disse que se pode sorrir assim?

... Mas, mudando de assunto, o que é mesmo felicidade?

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

“...Serais ce possible alors ?...”


Sinto um cheiro de saudade. Saudade daquilo que não foi, daquilo que não pôde ter sido. O tempo é um moinho d’água, e carrega todas as coisas consigo, assim como o vento leva e traz sementes de girassol antes do começo da primavera. Ele, o tempo, muda tudo, nos faz existir além da nossa vontade, e entre trapaças e surpresas, descubro que não estou imune. Sinto hoje um desejo de retirar certos nãos - mais que isso, sinto vontade de ter me deixado ir. Melancolia. Decisões nunca são fáceis, mas tenho descoberto que mais difícil que tomar decisões é assumí-las depois. Vivenciá-las. Eu não paguei pra ver e hoje os meus olhos reclamam. Sentem falta de terem tido qualquer pingo de nada. De terem simplesmente visto, sem nenhuma outra exigência. Sinto uma saudade que corroi e que pesa uma tonelada no peito.
Havia uma roda-gigante, mas decidi ficar embaixo e então ela se foi, girar sem mim. Agora olho tudo com esses tais olhos de saudade. Logo eu, que tinha certeza dos meus passos certos no chão, da minha indiferença por esse joguinho que me parecia monótono demais. Hoje eu ensaio um pedido, e por trás dele há uma falta quase vital de estar em meio à roda-gigante, de enxergar o mundo daquele jeito de lá. De mãos dadas, talvez.
Enquanto penso tudo isso, lembro do dia em que aprendi a ver através de uma lente, e nesse dia, o céu tinha diversas cores. Mas a luz, talvez por estar óbvia demais, extraordinária demais, não me deixou perceber. Eu vivi o vento no rosto, o sorriso tímido, os prazeres mínimos e completos, mas não segurei a mão estendida. Um não, outro não. Por quê?, me pergunto agora. Por quê, se hoje eu quero tanto estar lá?
Numa noite cheia de estrelas, decido que é a hora. Me encho de umas palavras poucas, num tom ainda envergonhado, assumindo uma meia coragem, mas dessa vez cheia do sim. "Vou me jogar"! Sorrio nervosa, espero a roda parar, um convite para subir, um convite para ficar de vez. Silêncio. Duas voltas depois, silêncio. Cinco, vinte e cinco, cinqüenta voltas depois, silêncio. Sento sobre os meus pés, agora inúteis para mim, e sussurro baixinho uma música francesa. A roda não pára e eu estou fora dela, com saudades. O tempo passa, cumprindo a sua sina. E então escurece, dessa vez sem estrelas.

“...Pourtant quelqu'un m'a dit que tu m'aimais encore...”

sábado, 7 de novembro de 2009

café

Tarde longa e sem pressa. Num café, aquele aconchegante no fim da avenida grande, onde os carros desaceleram relutantes decidindo para que lado ir. Entro, deixando as coisas que são de fora para fora. Escolho a mesinha ao fundo, aquela mais escondidinha, que tem um par de cadeiras acolchoadas. O lugar não é nada pretensioso, nem a minha intenção ali. Gosto particularmente da iluminação meio preguiçosa, do ar mareado, do jeito discretamente despreocupado do avental do garçom. Gosto da caneta atrás da orelha, que toca - quase toca – o seu sorriso largo. Gosto de estar solta, de me sentir leve e ter todas as dúvidas. Mas o pedido é o mesmo, o mais simples de todos, aquele de sempre: café. Puro. E quente, pra que se esfrie. Quanto mais frio, sinal de que não vi o tempo passar.
De costas para o cartaz que parece ter cheiro, observo calmamente o movimento das pessoas. Gente anônima, nem mais nem menos extraordinária. Gente, com toda a imensidão explicitamente contida que há de haver nelas. Eu finjo não ver, mas olho, quase que atentamente. Não é bisbilhotagem barata, devo dizer – é interesse! Como um magnetismo sutil, que me faz, de tempos em tempos, examinar tudo ao redor. Há um quê de poesia no jeito como o mundo se arruma, no jeito como as pessoas escolhem transitar nele – e dar dois beijinhos no rosto, inclinar a cabeça para trás ao rir exageradamente, olhar o relógio repetidas vezes, pingar uma gota de café na gravata azul. O cotidiano é surpreendentemente mais incrível quando a gente decide se interessar por ele.
O café chega, numa xícara branca que o faz parecer mais preto ainda. Preto e forte. Mas depois do aroma bom, o que sinto mesmo é um calor lancinante por dentro de mim. E o fogo desce fazendo um trajeto longo, me fazendo checar involuntariamente qualquer indício de ventilação por perto, me tomando por inteira e acabando num suor frio. Arranco o lenço do pescoço. Uma vez um amigo meu me perguntou o que eu achava de café – e eu respondi: “café é forte e vicia”. Segundo ele, descobri minutos depois, o que a pessoa pensa sobre café representa o que ela pensa sobre sexo. (E nesse momento, eu me vi em reticências.)
Deixo o café na mesa e me viro para pegar o diário na bolsa. Decido aproveitar a desculpa de ter de me mexer na cadeira para fotografar o ambiente mais uma vez. É uma espécie de espionagem, eu sei, mas não consigo evitar. Me dou pouquíssimas chances de estar apenas como expectadora. Sendo assim, ter a oportunidade de simplesmente ver a vida é como uma proposta indecentemente encantadora. Então eu vejo. Na mesa ao lado, uma moça com jeans usados e cabelos vermelhos bem curtos– sozinha também. Uma camiseta branca com o símbolo dos Rolling Stones – será que ela canta? Ou toca guitarra? Ou estuda cinema? Ou espirra muitas vezes ao dia? Ela tem um gato. Quer dizer, ela parece ter um gato. E acho que ela tem um gato de nome Joey.
Dali mais adiante tem uma portinha daquelas de bar de filme faroeste, e a supor pelos bonequinhos (de saia e de calça) desenhados nas laterais, percebo que ali é o banheiro. Mulheres costumam demorar mais tempo para sair, mas elas parecem mais familiarizadas com o ritual de ir a banheiros públicos (retocar a maquiagem, olhar no espelho, lavar as mãos, acompanhar a amiga. Às vezes, fazer xixi – e só.) Da tal portinha sai agora uma mulher elegantérrima. O batom, tom rosa claro, definitivamente acabou de ser colocado. Ela anda num salto que me faz perder o equilíbrio só de me imaginar em cima dele. E se chama Soraia. Não, talvez Simone ou Bárbara. Pode ser Bárbara realmente. Ela senta numa mesa que tem um moço esperando. Ele, já era de se esperar, tem um sorriso satisfeito no rosto.
Agora tomo um outro gole do café, bem mais frio que antes. O garçom me pergunta se eu quero mais alguma coisa, de um jeito tão simpático que eu fico me perguntando se aquilo foi uma gentileza ou apenas o trabalho dele. Prefiro achar que foi um misto dos dois, assim ele não fica com uma imagem de funcionário desleixado nem de empregado-robô. Eu não quero nada, mas agradeço pela atenção. Ao sair da minha, ele vai para uma mesa com três homens inseridos em ternos de diferentes tons de cinza, que falam alto, excitados com alguma coisa – um contrato, talvez. Ou só o jogo de futebol. Anota os pedidos, que eu não consegui ouvir, põe a caneta atrás da orelha e segue do seu jeito, quase alegre. Bom seria se todo mundo trabalhasse assim.
Fico mais, escrevo no diário, relembro coisas, observo as diferentes gentes que entram e saem, sem parar. Sorrio para mim mesma. Penso, penso, penso, até estar cansada. Um cansaço gostoso e doce... A tarde está indo embora e eu decido que devo ir também. Pago a conta, saio na rua, veja a avenida grande e, por fim, tenho que decidir. E pela direita eu vou.