terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Extran(h)o

Não sei se vive, se ainda respira com esses olhinhos pequenos cor de mar. Não sei mesmo, se tem aprendido outro idioma, ou se largou a idéia de conhecer o mundo e voltou pro emprego velho de sempre. O emprego que não te fazia sorrir. Não sei se está feliz, se ainda fotografa os gatinhos perdidos na rua, se ainda tem medo. Não sei se você mesmo não se confunde com um desses gatinhos sem rumo da rua, espiando cantos que te façam sentir seguro, sem frio. Por entre pernas alheias, talvez.  
Não sei se reencontrou aquela moça com quem trocava notícias, aquela que estava apaixonada por você há mais de um ano e se mantinha à espera. Não sei se procurou um médico, como prometeu sob os lençóis de constrangimento, se experimentou um hummus que finalmente fosse do seu agrado, se comeu o curry com gosto de lar. Não sei se tem sentido saudades, palavra que conheceu um dia desses, e que talvez ainda não tenha aprendido a usar. Se lavou as cuecas. Se cortou o cabelo. Se assistiu à final daquele campeonato na TV.
...
Eu sei que você tem tido boas tardes de Sábado. Sei que tem praticado esporte, encontrado pessoas que te querem de braços abertos, tem usado shorts limpos, roupas novas, o mesmo cabelo enorme sem corte da última vez que nos vimos, antes de eu desejar tesouras bem afiadas para picotá-los sem dó. Sei que tem mantido a barba aparada. Tem mantido essa altura desproporcional, que chega a ser doce e engraçada. Tem parecido mais você que nunca. Sei disso e mais um pouco, bem pouco mesmo, clandestina. Porque você não me contou, talvez esqueceu de contar, talvez não quis me deixar saber. Tento não brincar de adivinhar, porque nunca fui exatamente boa nesse jogo de adivinhação, e quando se perde mais que a terceira vez, dói. E daí a gente aprende. Lida com o não saber. E continua a vida não sabendo.
Não sei se você ainda sabe o meu nome sem precisar checar em alguma caderneta jogada perto do resto das memórias. Se existiu algo de real ou se não passou apenas de um sonho bom. Não sei, mas aceito a condição que me permite acreditar o suficiente para aquecer a alma. Se há de haver alguma coisa, que eu desfrute do subterfúgio que agora me olha discreto de longe com seus olhinhos cor de mar... Porque sobre isso eu sei.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Volta

Estou provando o gosto do doce exagerado, do deleite que se autodenomina deleite sem nenhuma vergonha na cara. No fundo, você não espera esse sentimento, que só aflora mesmo depois da primeira cerveja tomada direito da garrafa. Após todas as outras, você esquece simplesmente tudo. Não há certeza alguma em nenhuma dessas certezas que a vida me dá. Surpreendo-me menina escrevendo poesias com rimas de dor-amor, desenhando palmeiras em cadernos de desconhecidos. Será que eu já sabia? 
O livro está pela metade, o percurso pela metade, eu voltando pela metade. Alguém ficou com uma parte justa de mim, mas migalhas estão por todos os lugares. Tenho medo do que está por vir, porque simplesmente não sei. Estou a caminho de sentimentos que nunca ouvi falar, exposta à minha própria possibilidade. Um provador farto de decisões, e eu não sei tomá-las. Ao menos,  convenço-me por ora que não.
Quando chegar, ansiosa estou, vou direto pedir a benção ao pé da terra de onde brota o que há de melhor em mim. Saudade. No meu samba, sei, hei de encontrar respostas...

Gundaydin

Gunaydin

A manhã da antecipação me pega ainda pouco suculenta, mas cheia de intenção. Tenho tempo ilimitado para um desfrute da imaginação. Óculos de sol descolados, olhos marcados com lápis escuro, jaqueta preta de couro justa demais - onde estou com a cabeça? Penso apenas em engolir a mim mesma, pequeninos pedacinhos de prazer por ser quem eu sou, por me ter só pra mim. Só por hoje.
Percorro os espaços atenta à toda inspiração, o cheiro dos pós multicoloridos em caixinhas de madeira, a oração cantada em autofalantes com uma voz forte e trêmula, as pessoas seguindo o mesmo caminho que o meu, oferecendo suas próprias sortes. Retribuo sorrisos, trapaceio a língua e brinco de poder habitar confortavelmente aquilo que não é meu, mas me permeia. 
Sei que não estou pronta o suficiente para que me permitam voltar. Deveriam conter-me enquanto há tempo, porque meu corpo ainda borbulha do mal cozido, mal passado, à espera de mais. Não é hora, e eu sei, constato delicadamente à sombra do lenço suave cor coral enrolado no pescoço, enquanto sufoco do que sobra e é vazio.   
A vida percorre seus grandes portões de chegada e saída, eu obedeço os rituais todos com os dedos cruzados e o coração a mil. Se houver alguém chamado Destino olhando por mim, sussurro baixinho o meu desejo de paz. Ela e nada além. 

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

Azul

Esse lugar me fez chorar. Estou sentada num tapete cor vermelho e azul, flores desenhadas delicadamente para mostrar como é fértil e rica a vida. Não sei explicar esse sentir que me toma, sei apenas que é forte o suficiente para me fazer calar e escorrer. Aqui vejo Deus, posso tocá-lo com os olhos, beijar sua mão. É maior do que qualquer coisa que eu já tenha experimentado e tenha ciência do nome.
De lenço na cabeça, sapatos numa sacola ao lado, encontro em mim um respeito por algo que eu nem sabia existir. Faço uma oração pedindo apenas que meu coração se eleve ao alto, ao ponto mais alto que houver nessa Terra. Que ele saiba cantar a cada manhã. Que se derrame inteiro de amor. 
Há muitos pés com meias coloridas circulando curiosas por esse lugar Azul. Quem são essas pessoas, qual a fé que as faz andar? Ele, qualquer que seja o Seu nome, é um só, e ocupa todos os espaços. 
Tenho tanta sorte que nem consigo acreditar. Engrandeço-me ao descobrir ainda dentro de mim um sentimento desse tamanho gigante. Agora percebo quanto falta fazia ver o mundo através de olhos assim, encantados, cheios de paixão. 
A vida é mais que boa nessas horas.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Enquanto dorme o sol

Faça-me bonita. Esse é o pedido ao pé do ouvido, e antes mesmo do primeiro traço, já se sabia o que iria virar. Essa é a pitada da sorte, a velha e boa carta na manga. Sinto saudades de estar confortavelmente nua com alguém, inteiramente à mostra sem nem perceber. Sem nenhuma intenção, só a permissão em poder ser, o grande prazer da imperfeição humana. Um número de telefone que não esteja no meio de outros muitos, o banco de trás de um carro qualquer alugado no meio de uma tempestade de pedras de gelo caindo enfurecidas do céu. Flashes congelados insistem nervosos em habitar meus desejos, premissas de pensamentos. Eu os alimento fartamente com pedaços inteiros de recordação.
Um velho turco leu a minha sorte na borra do café que tomei a goles calmos. Disse que via pés que caminhavam para lugares distantes, e eu ingeri, além do café, toda a poesia contida nele. Gostei de me ver por trás dos passos largos largados mundo afora. Dentro do peito, um coração com batidas fortes, esperando pela manhã que há de trazer mais. Muito mais.
Quando penso onde estive, com quem estive, enxergo-me projetada, eu mesma, no meu tamanho polegar, minhas pernas curtas cheias de pressa em desacortinar todo o tipo de mistério. Lembro-me especialmente dos bons, com mordiscadas sapecas no lábio inferior da boca, uma imitação chinesa da Paris anos 20, uma dança convulsiva na casa de um senhor de bastante idade. A poesia branca, azul, aurora e cor de terra, toda ela contida numa caligrafia delicadamente escrita com açúcar e mel.
Na luz do entardecer, à beira do mundo inteiro que se colore à minha frente, sinto que sou, ali, para os pincéis pretos e brancos todos gastos, beleza e inspiração. Faça-me dormir em seu colo, e acordar com hálito doce de maçã da manhã.

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

+44

Hoje eu senti que queria você do meu lado, mas não podia sentir saudades. Precisei de uma estranha para me dizer o quão crítica eu sou comigo mesma. Como se eu não soubesse. Tenho tido noites agitadas, mas elas não são suficientes para me fazer acordar. São rios de imagens que me passam continuamente, não respeitam minha idéia pré fabricada de tempo e espaço, e me lembram o quanto estou submersa, sem oxigênio. Hoje é um daqueles dias em que tudo está rarefeito. Dias em que eu simplesmente perco a voz.
Alguém de longe me liga e eu sinto uma proximidade estranha. Quem está ao lado parece distante demais, e eu desejo apenas mergulhar, fundo o suficiente pra não ouvir. Quero deixar cair, mas ela insiste em ficar tocando-me o rosto de forma a cristalizar-se, delicadamente sufocante. Não posso mais mentir, nem fingir, ou correr. A vida pede sua parte, e eu pago com o pouco que tenho nos bolsos de trás dos jeans sujos de terra. Crio o enfeite das horas para comer quando estiver sozinha, trancada em mim mesma pelos fones de ouvido. Faz tempo que não me cantam pertinho aquela oração, e eu já sinto falta dela. 
Minha inspiração é fulgás, assim como meu paladar, minha lista de presentes, meus diários de figurinhas. A moça bonita me oferece chicletes, eu aceito para parecer educada, mas no fim, o gosto doce de laranja me cai satisfatoriamente bem, como se soubesse da minha necessidade de algo mais. A avenida é longa, mas o tempo ainda não é o bastante. A saudade foi desgastada, descongelou-se por entre as horas, e o que restou foi apenas a vontade de nada. Nem um pouco. Lentas mordidas aguardam meio amanhecer num outro continente. A outra metade continuará por aqui, em busca.

sábado, 18 de fevereiro de 2012

Despedaço

Todos os seus CDS são meus. E as caixinhas de música, os despertares cheios de preguiça, a cafeteira que não faz café. Toda a sua intenção inexata por qualquer uma dessas coisas. Os pratos brancos, porcelana dada de presente, talvez presente de vó, além do carrinho de feira, do pinguim de geladeira.
Toda a sua caligrafia pertence às minhas dedicatórias, meus livros em sua estante, minha pele em seu lençol queimado com bituca de cigarro. O meu Chico que era seu até eu gostar. O seu hábito que virou meu, porque dele eu gostei. Tudo muito misturado num universo que parecia não ter nome nem fim.
Suas botas nos meus pés, sua gravata e nada mais. Os anéis dos seus dedinhos pequenos, menores que os meus dedinhos pequenos sempre frios. Sua jaqueta que hoje me veste um vestido, seu inglês perfeito, meu francês só na língua e nos olhos.
Talvez eu fique por aqui.
Comprei um cachecol cheio de cor, pus um pouco de cor nas bochehas rosadas. Lá fora há muito cinza, em harmonia ao que me espia. À espera de coragem. Preciso de uma caixa de papelão onde caibam Cds, botas, lágrimas e saudade...

Pausa para indagação

Quem é essa estranha, essa desconhecida, que nem aparece aqui agora para me fazer entender? Quem é essa louca que me acorda com um beijo meio seco, meio molhado, me escreve no corpo marcas de coisas das quais não lembro, e desaparece no suspiro do cheiro café da manhã? Quem é esse ser dúbio cheio de mãos, caras, bocas, que me invade violentamente, me arranca roupas, chupa os meus desejos, depois deixa só o pó, o bagaço? Amargo. Cadê você aqui agora, quando é cedo, arde e faz frio? Sentada de frente à eternidade, estou sozinha, nua, quieta e sem voz. Comeu os meus braços ontem à noite, e agora estou simplesmente atada. Parada. Imóvel.
Você, que permite que o indizível fique no não dito, não questiona, só vive. Sou só inveja. Quem é você? 

Tanuit

Acordo com a voz pesada de 1958, pela janela a partitura infinita cor flocos de neve. Ainda estou zonza do despertar tão longe. A roupa que me veste melhor é a paixão, e eu tenho medo de sair agora daqui e passar muito frio. Sei que estou nua. Meus olhos semicerrados esperam a hora de ter de partir, e eu os confundo com tanta luz e estática.
Mal cheguei e já encontrei cabelos que vivem apenas para que eu os olhe. Eros passou antes de mim por aqui. Presto discreta atenção neles e em todo o resto. No fundo, os cabelos só tornam tudo mais óbvio. Nem lembro mais dos outros olhos, da outra boca de despedida, enrolada língua. Nem espero mais outra vida. 
Sou a única habitante desse lugar, além das demais vozes que insistem em competir umas com as outras, mas é o silêncio quem vence. Eu queimo ao nada. Ocorre-me, entretanto, a possibilidade de que talvez eu nao seja interessante o bastante, e isso, apenas por hoje, honestamente me basta. Faz tanto frio que até meu pensamento se esquiva em responder. Dois pesos para cinco, talvez seis, muitas medidas. Tantas que já perdi a conta. A minha fome só ronca, e nunca passa. Eu como! 
Alguém com sotaque elegante, alguém com uma opinião sobre todas as coisas, alguém que não deixa o cachorro da rua me morder. Tudo misturado com muito tempero, pedaços fritos de frango, uma bebida quente. Com sorte, uma atitude mais leve sobre mim mesma, sobre a idéia de tempo, sobre o tamanho das horas. Nada se perde. Cultivo, regando delicadamente e recolhendo as sobras, a minha motivação.

A la Véronique



Dia novo, gosto do vinho sem nome misturado à noite. Cigarro apimentado, porque Paris está logo aqui, e eu me descobri outro alguém. Chamam por um nome, madrugada dentro, e eu respondo com a boca, com os olhos, com a língua, com as mãos. Esse nome nem é meu. Como a fumaça que sai lânguida pelo ar, tudo em mim se dissolve. Hoje sinto apenas o resquício distante do cheiro, vaga lembrança do deleite charmoso cheio de pretensão, cheio de arte. Avantajado. Lúcido devaneio... Saudade.
Minha roupa de baixo revela além do fato, mistério. Compro mais cerveja, enquanto tentam adivinhar minha identidade. Sou nada óbvia, inteiramente explícita. Pode tocar. Tiro uma fotografia borrada só para dizer que quero recordar o que quer seja isso nos vinte minutos seguintes. Honestamente, não faço a menor questão.
Arranho pelas costas um aviso escravo de que irei ao sacrifício. Nuca. Pescoço por entre os dentes. Agora mesmo. E ponto final.
Decido trêmula que já tive o suficiente, está na hora de mais, mais uma vez. Nada de quartos frios de hotel com camas que aguardam afeto. Nada de luvas tamanho maior emprestadas para que se aqueça o tantinho de vontade. Nada de espera pelo que não vem, ou pelo que vem clichê e serve apenas para que se escreva ao som de um cantor novidade. Não é absolutamente sobre lágrimas e papel toalha que estou falando, fico apenas com o drama, um daqueles de bom tamanho. Meu ar puro é assim. E esse é só o seu começo.
Amanhece nevando até as canelas, tão infinitamente branco que dói. Tudo contınuará do jeito que está, a nuvem clara vai perder sua cor, e ela, Véronique, vai evaporar. Digo adeus sem palavras. Braços espreguiçarão para longe as lembranças da madrugada aquecida de poesia. Tatuaram-me, porém, uma idéia, e tenho a leve impressão de que de hoje em diante nunca mais serei a mesma.

Na caverna

Habita em mim agora um desejo de fechar os olhos e ficar. Parada. Habita em mim uma preguiça que vem do ventre, resquício dos dias em que banhos e cama eram um trabalho difícil demais! Estou de óculos e gosto de pasta de dente na boca, hálito quente e leve irritação com o brilho intenso da manhã. 
Preciso de um banho, para lavar até isso. Um banho que tire mais. Preciso de um sabonete barato sem cheiro, sem imaginação, sem promessa ou intenção qualquer. Apenas a existência tênue de fazer sair, sutilmente, o resto de tudo que é mais de um, o excesso. Estou pagando minha herança inteira de postais de lugares aos quais nunca fui, porque sei que tenho bagagem demais. Tenho o sabor do que sobra na palma da minha mão, o ar fresco do discretamente maior. Não cabe dentro.
Despejo a rígida sensação de que depois de agora o que insistir em ficar será algo imutável. Permito-me uma fotografia para recordação, e após ela, cinco minutos de ciência sobre o que de fato é. Fica sempre o inexplicável.
Após meia pílula de sono, estou pronta a deixar por ora tamanha indagação. Banho, pasta de dente, óculos de grau e imaginação. Dedos cruzados, uma xícara de chá de maçã, meia barra de chocolate Milka. Na hora certa eu vou saber. 

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

Superfície

De repente os dias e as noites deixaram de se confundir uns com os outros. A urgência é por um cigarro entre os dedos, e a pose que acompanha ele. Placas na beira da estrada espiam curiosas o sabor que há por cima da minha boca. É vontade. Vontade de mais.
Meu sonho antes de morrer é fazer o tipo de coisa que se faz quando se está com saudade. Pena que o tempo é um recurso limitado. Ou pelo menos é o que têm me dito. A minha eternidade se dá agora sentada em frente aos copos misturados com bebidas de diferentes cores, uma azeitona com um recheio de cheiro forte, talvez uma ou duas promessas para logo menos. Sou inteira sal, pimenta e cuminho.
Além de mistério.
Na cama pequena, horas menores ainda compõem meu restrito infinito de possibilidades. Ao meu alcance um livro de cabeceira com umas três frases marcadas de azul bebê, aquecedor roncando sua preguiça essencialmente monótona, nada na TV. Nada no corpo também, nem beijos, nem frases, nem pressa. A seda levemente pretenciosa lembra o quão improvável é essa situação, e em sendo assim, o que me resta é deixar manchar com um gole de vinho barato e farto. Ou um café forte.
A cômoda reflete o verde musgo antigo das gavetas, sintoma de maturidade, de que é hora de crescer. Basta ainda pintar as unhas de vermelho, o batom vermelho nos lábios, os saltos altos, a atitude clichê. Não sei ao certo se isso tudo é para mim, ao menos não agora - gosto das botas verde musgo sujas de barro, do jeans barato desbotado, da boina usada meio de lado. Gosto da idéia de poder, eu mesma, ainda ser gasta na superfície.
Belisca-me a mordida de realidade que se fará essencial após a próxima parada. Fruta madura na feira, noites cheias de tarefas sérias demais, tabela a cumprir. Alguém com quem ter uma conversa tão séria quanto a tarefa. Qualquer outro lugar vai passar a ser inalcançavelmente longe, e eu vou nadar, sem dar mergulhos perigosamente arriscados, à procura de um paraíso justo o suficiente para me deixar... Ser.
Ora, pois, assim se faz a vida! No curto espaço de tempo em que duram meu cigarro, a pose e a poesia. Qualquer outra coisa é apenas parêntesis. 

Agridoce

Restos de sentimentos espalhados pelas minhas aretas. Nada inteiro, tudo de ontem, ou antes de ontem, ou muito tempo atrás. Picadas de abelha na pele macia, curva maliciosa que peca em se insinuar. Eu como todo o mel. Cansada estou de deixar para depois. Tento voltar a dias que não eram assim, nada de céu, nem de inferno, apenas a tênue névoa de escuridão.
A gente aprende que deve ter bastante cuidado até mesmo para olhar. Eu, antes mesmo de olhar, já vou entrando. Acomodando-me por entre as paredes de pedra vermelha, tapetes, incensos, toda a umidade misturada à solidão. Enquanto penso e espero, sinto minhas mãos tomando forma de gota, escorro por entre costas de promessas de amanhã, fluidifico-me. Como se fosse algum tipo de segredo, experimento o chá sabor calor, hábito nada meu, mas que como todo o resto, por hoje já é minha segunda pele. Não sei o que quero, exceto toda a parte que eu sei, e não quero ouvir.
Há pedaços aqui pela metade, o tempo que crava seu destino com dentes afiados e não deixa escapar. Eu escrevo com meus próprios dedos, da mesma forma que ponho tudo na boca, de uma vez só, lambendo até onde há. Ainda sinto-me flutuante, dissolvida entre o existir e a probabilidade. A minha mente é uma casa, e nela moram pedaços de porém. Exalo sabor por todos os poros, e ele é agridoce. 

Teatrando

Por entre essas pedras, tantos as claras quanto as escuras grosseiramente gastas pelo tempo, escuto o silêncio de todas as pernas nervosas que viviam aqui. Se eu fechar os olhos e só ouvir, posso sentir as vozes entrando pelos meus ouvidos, as máscaras de riso e choro que cobriam os rostos, o tom meio teatral mesmo fora dos palcos. Há um cheiro de nada, e esse nada me remete aos dias antes de qualquer coisa que sei existir.
Saio do mergulho pronta a encarar qualquer tipo de negociação. Tropeço sorrisos por entre a gargalha extravagante que ecoa pelo tempo de "para sempre"; esse para sempre de agora.
Mandaram-me uma notícia, e ela urge! Vou comprar uma bicicleta e pedalar todo o caminho até Roma, porque eu tenho boca, e também porque disseram que lá há restos de vidas de um monte de gente. Porque há algo a se resgatar. Algo a se descobrir. E porque há uma estrada para outro lugar adiante.

31

Ele tem aqueles olhos que parecem que foram feitos de sorrir, mas que olham cheios de mistério. Eu precisava falar, e após a terceira, eu falei. Agora simplesmente fecho os meus olhos e danço conforme a batida da música que parece me sorrir com o canto da boca. Mon amour, ela diz. Amanhã já nem importa mais. 
Barris inteiros dividem o som das gargalhadas e o mastigar de azeitonas. Há a mesa e o caminho inteiro entre dois continentes. Minhas mãos não tocam além de muito longe, nem vão tocar, enquanto meus dedos congelam dentro da distância fria que naturalmente resolveu se impor. Ela, com seu desejo quase próprio. Tento não pensar para além do essencial.
Hoje já é depois do dia seguinte, e a poesia simplesmente se dissipou em meio ao leve ar de curta irritação. Os olhos agora contêm rugas mal disfarçadas, mal contadas pelo tempo. Não há desejo de partilhar, ou dividir, não há desejo nem ao menos de emprestar os fones de ouvido para que saiba a música que me faz invisivelmente sorrir. É simplesmente tarde, a minha paciência dormiu no meio do caminho e resolveu não acordar nunca mais.
Conto horas dentro do chacoalhar escorregadio da estrada, sem ter o menor poder de decisão. Há uma longa espera oscilante sobre o que exatamente sentir. Pouco me importa. Quem vai dormir agora sou eu...

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Onde canta o sabiá

A minha terra tem palmeiras, tem guardachuvinhas em copos de bebida cor limão, tem ovos mexidos no café da manhã. Tem um violão que ri e chora, e se mistura ao corpo da mulher despretenciosa, saia florida e cachos generosos no cabelo, um avantajado sorriso pedindo uma noite de estrelas. Mulher de cor escura e pele quente. Um sabor maresia nos ombros largos, o desfrute da madrugada clara. Sem medo. Sem perda nem espera. Só o que há e é real, sem amanhã.
A minha terra tem sabiá e a saborosa feijoada do Domingo em família, uma ilha cheia de sol e preguiça. Tem também abacaxi com hortelã batidos fresquinhos, e as batatas roxinhas da mãe da Adélia. Tem um guri que levanta antes do raio pensar em acordar, e sai por aí cantando com suas curtas pernas, seus passos largos. Seus heróis de papelão, suas refeições de frutas roubadas do pé. Ouve ao longe gritos de corre-menino, mas ainda assim, insiste em controlar as horas boas da vida.
A minha terra tem o mar calminho pela janela do quarto, três ou quartos jeitos de se dizer que sente falta, ou sente saudade, um Senhor dos grandes abençoando qualquer um que simplesmente abra os braços. Tem um monte de homens com pernas grossas, ou pernas de pau, fazendo não sei exatamente o quê atrás de uma bola, e meninas novinhas adquirindo marcas deixadas pelo sol extravagante no seus corpinhos esbeltos, esculturais. Tem a voz daquele moço, que já não é tão moço mais, mas que ainda seduz com seus imcríveis olhos azuis. Essa minha terra, especialmente ela, sagrada e profana, cheia de mistérios, som e poesia.
A minha terra tem meu nome cravado no solo, raiz fixa e forte, frondosa cobertura que me deixa espreguiçar na sombra. Tem o gosto do meu suor, do meu perfume importado, do meu cheiro de todo dia pela manhã. Tem meus sorrisos e meus apertos, minha habilidosa capacidade de não saber, nunca, mas sentir. Tem todas as minhas paixões intensamente, exageradamente, deliciosamente vividas. Só lá sou o que há de melhor para ser em mim.                       
Lá, onde canta o sabiá. 

Road

Imersa numa maravilha que, de tão branca, chega a ser azul. É uma rota sem fim... Do céu caem pedaços de luz e som, flocos de novidade. É bom não estar só no meio da imensidão.
Aqui estamos, apostando as fichas nas possibilidades. Sem planos, sem nem ao menos conhecimento de causa; apenas uma aquecida chama de nos percebermos vivos. Tentando não levar o relógio e sua batida inabalável tão a sério, me pego com mãos dentro de um ninho, aninhando a mim mesma em ombros que acabei de descobrir. Todos partilhando do mesmo sentimento excitante e mágico do desconhecido que está logo ali, cinco minutos à frente.
Há no meio disso tudo um pouco do de sempre, cansado e velho, mas há também a promessa desse sabor antes nunca experimentado. Vou apostar no doce que pode escorrer pelo canto da minha boca, lambuzar os meus dedos e fazer com que eu volte a ser ridicularmente criança. Não sirvo para essa coisa toda de ser grande, maior ainda. É simplesmente uma roupa justa demais para o meu desejo de ser livre.
(...com a música certa até meus pensamentos fazem todo sentido....)

Sol e som

É como se aqui eu simplesmente pudesse ter tudo. Ser tudo. E a vida não tivesse pressa, porque antes dela o sol precisa nascer e se pôr, sem nenhum mistério, apenas magia. Uma boa comida vinda do mar, com muita manteiga e muita sorte. É assim que eu devoro o último raio de sol. As cores por trás das lentes, à frente dos olhos, as milhares de faíscas borbulhando desejos. Com os pés congelados, nada como ter o coração aquecido pela incrível obra de arte que a natureza insiste em construir. Um deleite bom de simplesmente apreciar, a gratidão pelo pulsar ritmico de cada dia. 
No meio da noite, silêncio e madrugada viram dois lobos grandes, de ruído cansado. Melodia triste, com cheiro de estrada, de botas sujas de barro. Nessas horas, a solidão faz todo o sentido. Uma gaita chora os devanios do negro vento que corre sonoro avisando sua chegada, sua partida. Nada fica. Concluo poeticamente o pensamento dos poderosos deuses do olimpo - logo ali:  é uma espera, uma eterna busca pelo amanhecer... 

... Entra por debaixo da porta um cheiro de pão fresco e quente. Sinto que já é hora de abrí-la. 

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Tesekur ederim

É possível se ter todas as horas agora. Aproveito meu instante para simplesmente ver, olhar os olhos que falam todas as histórias através de rugas cobertas por pedaços de pano preto. Enquanto sinto, peço para não mais ser, nunca mais, tão dura comigo mesma. A verdade é que só aqueles olhos misteriosos sabem...
Gente silenciosa que engrandece a alma só por existir. Por passar entre os outros, tentando parecer não estar ali, mas impondo suntuosamente a sua presença. Eu praticamento respondo em reverência ao chamado inevitável da oração cantada em forma de música trêmula viajante pelos autofalantes. Na voz de um homem que deve, sim, ter bigodes, deve ter uma expressão forte, deve certamente usar aquele chapéu. Não que sejam todos iguais. Simplesmente por serem únicos nas suas formas de pertencer. Estou envolvida ao extremo. 
Eu, pernas pequenas, surpreendo-me ainda com uma enorme percepção de estranhamento sobre quem eu sou. Nada faz sentido - apenas a potente sensação de poder ser. Nesse pedaço fechado de parte do mundo em que me encontro agora correm soltos pelo ar os sentimentos que me devoram sutilmente, sem nenhuma pretensão de se fazerem compreender. Para além da necessidade de estendimento está o que realmente é. Hoje e há milênios...