sábado, 28 de agosto de 2010

Eu, canção.

Estou mais em mim que nunca. Depois de ontem percebi que o furacão de dentro repercute mundo afora, e a minha fé tem que vir do peito, da crença real, abençoada e forte, em mim mesma. Ultrapassei a fase do embotamento, e por fim tornei-me capaz de sentir sem reservas, sem precauções – a divina comédia das minhas próprias muralhas. Mas apesar do encantamento momentâneo pelo escancarar das janelas, ainda preciso percorrer uma ponte infindável até alcançar o outro, honesta e entregue, com os dois pés do lado de lá e a cara a bater. Ofertada, com rosas, perfume e mel. Sim, eu quero ser, quero ver no que dá.

Fecho os olhos e deixo ser, sem nem mais saber ao certo o motivo da batedeira no peito. Eu misturo tudo, vou empilhando as sensações, transbordando-as uma a uma, mas agora, depois de muito hesitar, finalmente aprendi a enxergar a leveza nesse meu jeito estabanado de ser. Quis ser senhora do tempo, do destino, e acabei refém dos meus desejos íntimos e pouco racionais. Sou tomada por trovoadas mesmo em dias quentes, maldigo a falta de trincos nas portas, e quando vejo, já fui. Repetitiva, desarmônica. Fico triste, derrubo uma lágrima e mais outra, desisto da vida por cinco minutos eternos. Ainda bem que cantar faz bem. Meu sofrimento é auto-limitado, porque ele encontra a barreira melódica na minha vontade de ser levada pelo ritmo. Me assusto ao perceber que, apesar de tudo, eu quero estar aqui, onde estou, sinfônica, desafinada. Essa é a minha voz. Tenho uma orquestra inteira dentro de mim, com os mais variados sons ávidos por sair no tom mais alto que existir. Eu não caibo e extrapolo. Me espalho, me lanço leve ao mar...“ A vida é oferenda...”.

Tudo brota de mim, a sensação falha e incompetente, o cansaço maior que duas vezes o peso do corpo, a vontade de não querer mais isso da vida. De repente me falta fôlego, me falta o sentido, me falta razão. Estou presa à inércia surda do vácuo, não há nada além da emoção fria de desapontamento. Sou eu comigo mesma – e do outro lado está o mundo, duro, com olhos vermelhos e dentes rangidos à mostra. Eu encolho.

São essas coisas diárias, estáticas e intransigentes, que me fazem perder a paixão. Alguém me diz - como se vive sem paixão? Eu preciso estar apaixonada, preciso acreditar verdadeiramente naquilo que faço, ter brilho nos olhos, sangue nos olhos! Eu preciso do arrepio, da excitação, da poesia - mesmo na dor. Sem isso sou passarinho na gaiola e caibo num envelopinho de papel.

Hoje eu não sei exatamente o que eu quero. Sei apenas que amo a idéia lispectoriana de liberdade, a minha idéia boba e romântica de fazer a diferença, a idéia maior de ser feliz, simplesmente feliz. Mas o que tenho vivido é uma reprodução cega e vazia dos dias de ontem, um transitar moribundo pelos lugares onde me mandaram estar. Me aproprio pouco dos passos que eu mesma dou, impaciente, pálida, murcha. Se me perguntarem, eu não sei responder.

Ainda lembro daquilo que um dia me impulsionou até aqui. Meu combustível é a gente desse mundo afora, as histórias de vida de cada pessoa, a beleza oculta nas faces duras e calejadas, nos pés, nas mãos. É disso que eu gosto, de sentir, de estar junto. Gosto de me emocionar com relatos entrecortados de um pedaço discreto da imensidão de uma vida qualquer, nos 15 minutos que, sim, têm impacto tsunâmico sobre mim. Eu gosto do encontro e da verdade no olho do outro.

Seja lá o que eu esteja vivenciando agora, sinto ainda latente aqui dentro os meus sonhos da época em que sonhar era real. Por enquanto, eu espero - agradecida pela sensação boa de que o dia acabou e eu posso tirar os sapatos.

Eu quero todos ao mesmo tempo. Insaciável que sou e cansada da vida de não ter ninguém, decido que por essa noite, só essa, eu sou o mundo. O agora é a eternidade, e eu sou infinita, inteira, completa. Tudo é lucro. Nada de lágrimas derramadas em pedacinhos dobrados de papel. O que eu quero mesmo é explodir, dançar até enlouquecer os olhos já loucos de desejo. Um sotaque em outra língua, a boca clamando por outra boca, ou por um pedaço da letra provocante do samba da nega do morro. Eu sou várias, sou todas elas, pra todos os gostos - e nem me importo com a minha cara cínica. O meu perfume doce, truque antigo, intencionalmente colocado para que se espalhasse no ar. Uma mão puxa forte os meus cabelos e rouba o que há do meu cheiro. Eu fecho os olhos e deixo que leve todo. Habita agora o meu pescoço, e não me larga mesmo quando eu corro, querendo outra coisa qualquer. Pulso, o rebolar na batida, grudada num corpo que se acomoda ao meu. Sem identidade, só pele.

Estou numa cidadezinha com nome estranho, numa salinha escondida de um hotel, em cima da mesa de casa, grudada em uma grade da praça onde pisca uma luz ao fundo. Estou num bequinho duvidoso, no bar rodeado de gente dançando, no quarto do apartamento dele. Hoje, um palco só pra mim. Estou no mundo. Eu sou o mundo.

Estou com medo de escrever. As palavras hesitam em sair e me questionam se vale a pena tirá-las de dentro de mim. Permaneço inteira mesmo despedaçada, e é isso que me mantém de pé, insistente – o meu senso de mundo particular maior que todo o resto.

Em meio ao desleixo, à vontade de desabitar essa pele, de transfundir os pensamentos endurecidos e arraigados, reconheço uma defensora loba tomar conta de mim, tão firme e intensa que me faz criar garras. A verdade é que eu banco minhas sensações, estou aqui, com unhas e dentes, certa do que sou. Como uma mãe defendendo sua prole, me coloco à frente escancarada, afastando pra longe aquilo que me faz doer. É noite e eu acabo de fechar as portas. Tenho sofá, cama e coração vazios, mas ainda assim, eu tenho a mim. Finalmente descobri que posso estabelecer um pacto comigo mesma - apesar das desavenças pessoais, das frustrações gritantes, do medo de gelar a espinha. Não quero me curar nunca mais da sensação viciante e entorpecente de me bastar e me querer, mais que tudo no mundo.

Hoje estou concha do mar.

Qual é? Tenho usado meias palavras enfeitadas, mas o que eu quero na verdade gritar é que eu tenho raiva! Os 65 % são meus, e me bastam. Abri as portas pra deixar sair – que o vento leve e eu não precise mais ser inundada da lembrança pelo cheiro toda vez que entrar por elas. Afinal, isso aqui é meu – e do que há em mim eu não abro mão.

Uma voz lá dentro me pede calma, me faz contar até 10, depois até 20, depois o alfabeto de trás pra frente. Já na metade eu me perco, e perco também o motivo que me fez explodir. Mas dessa vez não quero mais me comprar um chocalho – nada de distração, eu quero sentir inteiro, cuspir pra fora e virar do avesso o me vem derretendo por dentro. Sou exagerada, tenho poucas medidas de contenção, e é por isso mesmo que dessa vez eu tou pouco me lixando! Eu tenho o direito de sentir!!! (,,,E todos os palavrões pouco reproduzíveis aqui).

Pronto, agora estou névoa, leve e livre, pronta para outra!

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Ouriço-do-mar

Estou exausta. A energia se esvai de mim como fiapos de carpetes velhos. Tenho que comprar uma caneta – há três dias acordo com a incumbência de comprar uma caneta, mas meu desejo é dormir um pouco mais. Faz tanto frio que eu tenho medo de me mexer, e o calor do meu peito, por si só, não é capaz de aquecer tudo o que está exposto. Parei de viver para viver outra coisa – impressa tão ditatorialmente a ponto de me fazer enfrentá-la mesmo sem vontade, sem tesão nem expectativa. Intimidada, flutuo de um canto a outro sem nem saber como cheguei daqui pra lá. Meu pensamento-liquidificador apita avisos que envolvem canetas e ligações não atendidas, e eu desejo simplesmente não precisar decidir.

Essa noite sonhei com um lugar onde eu estava só, e finalmente senti que meus músculos pararam de me mostrar o quanto eles estavam bravos comigo – mas o sonho (ou o sono) durou cinco minutos, e já logo era um dia pronto pra tudo de novo. Agora relutante, automatizo passadas duras e tento afastar qualquer resquício de lembrança boa que se insinua atraente ao meu redor. Nada adianta, meu riso está escondido e eu aceito, por fim, as nuvens cinzas e o humor preto-e-branco. Qualquer coisa vai ficar pra depois.

Uma idéia fixa e neurótica na cabeça, histeria podada por um sermão sem fundamento, brigas com relacionamentos diários insustentáveis, grito da boca pra dentro, ausência de canção. Eu já sei o que está acontecendo. Alguém quer falar comigo, por favor? Meia hora depois, e eu estou no mesmo lugar. Outra manhã, e o mesmo lugar.

Estou ouriço-do-mar. Estou ouriço e espeto.

domingo, 15 de agosto de 2010

Brisa fria e leve, luzes mil numa avenida que não tem fim. Trilha sonora e o pensamento longe, a decisão de caminhar em meio à gente, experimentando a vida de dentro passar pelo mundo de fora, lúcido e acelerado. Uma estrela única, solitária, ilumina o céu quase inteiro, e eu sigo tentando identificar o que há por trás de cada rosto que surge e desaparece, e caminha em direção oposta a minha. Uma menina com cabelos pretos e ar misterioso escolhe três ou quatro filmes pra assistir mais tarde em casa. Nenhum convite. Uma banca montada com brincos de todas as cores do arco-íris atrai a atenção de uma pessoa ou outra. Um homem dorme no chão, envolto em papelões úmidos e chega a ser confundido com a paisagem. Essa é a cidade grande, prometida. Ainda estou indecisa quanto a uma coisa, qualquer coisa, todas as mínimas coisas evidentes a meu respeito. Olho pra luz que pisca e dita o fluxo ritmado dos automóveis, em suas filas grandes e intermináveis. Está verde, e eu acho que é pra mim, minha nova verdade. Sigo em frente, disposta a me deixar ser levada pelo vento, pela curiosa sensação de simplesmente ir.

O moço com braços bonitos deixa o skate cair por uma ladeira e quando percebe já é tarde demais. Uma vez na ladeira, tem que chegar lá em baixo, pra depois voltar e continuar a correr, mais rápido que nunca. Um vestido com listas grossas cor de amora passa e deixa o vento levá-lo para dançar. Pares de sapatos cheios de estilo tropeçam uns nos outros. Duas mãos dadas me lembram que têm coisas que eu quero, sim, mentira minha fingir que não. Paro, porque agora eu não posso passar, separada por faixas brancas riscadas no chão do rapaz com cara de negócios e mãos cheias de papéis. Respiro fundo e olho acima para as construções sem fim. Me sinto pequena, mas também infinita num espaço particularmente menor e mais denso que o projetado aos meus olhos. Qual será a distância de lá até aquilo que me fará feliz?

Decido que quero tomar um café sentada numa poltrona grande e confortável, que me afunda naqueles tais pensamentos sem nenhuma razão. Insuportável funcionamento acelerado da mente. Hipnotizada e disrítmica tento entender aquilo que ultrapassa qualquer entendimento, enquanto mareio os olhos cansados... Sinto o gosto marcado e denso do grão moído, amargo a sensação teimosa do meu apelo a mim mesma. Mas por fim, sou vencida pela brisa doce e fria da avenida grande, que me toma outra vez e me mostra que há pulso quente e forte emergindo de mim.