sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Rotina

....Tic-tac, tic-tac, tic-tac, som vazio na escuridão. Tic-tac, ritmado, tic-tac, sem parar, tic-tac, tic-tac... Trim-trim! Um som alto! Trim-trim, um som novo, trim-trim , prolongado, trim-trim, insuportável, aperta o botão, travesseiro no rosto, travesseiro voando, e o trim-trim não pára. Dois minutos, mais cinco minutos, mais meia-hora, ok, pé no chão frio. Estica um braço, abre a boca, estica outro braço, resmunga para si mesma. Chuveiro quente, mais dois minutos, mais cinco minutos, a conta de luz. Tic-tac, está atrasada, espelho borrado, maquiagem borrada, sapato jogado no meio da sala, tropeção. Tic-tac, tic-tac, tic-tac, já entendeu!! Pó de café, mais água quente, caixa do filtro vazia, esqueceu de comprar. Abre o armário, um casaco mais quente, pega a bolsa, troca a bolsa, "preciso comprar uma bolsa nova", acaba saindo com a mesma de sempre. Tic-tac, o elevador não chega, "Bom dia", outro "Bom dia", "Bom dia, desculpa o atraso". Entra na sala, senta na frente, a cadeira quebrada, troca o lugar, abre o caderno, e não ouve mais tic-tac, só uma voz lá longe. Pisca um olho, escreve um bilhete, recebe um bilhete, e tenta não rir. A luz apagada. A luz azul projetando letrinhas numa parede. Que assunto mesmo? Aperta o olho e tenta concentrar. Caneta azul, caneta vermelha, caneta preta e lápis com uma borracha em forma de coração. Escreve um título com uma observação "xerocar o início depois". Copia as letrinhas, faz cara de conteúdo, pousa o lápis na boca, pensa no que tem que fazer. Ouve uma pergunta, percebe que o homem em pé está olhando, pede pra repetir a pergunta, enrola uma explicação. As letrinhas somem, a luz acende, cinco minutos. Não, não, quinze, por favor. Quinze minutos, banheiro, xicrinha minúscula de café que custa o mesmo tanto que 100 filtros de papel. Tic-tac, tem que voltar, abre o caderno, escreve outro título, desenha uma nuvem em volta do título, "que data é hoje mesmo?". Mais letrinhas. O som da voz perto, vinte minutos, o som da voz longe, mais vinte minutos, o som da barriga roncando, mais vinte minutos, "até a tarde!". Tic-tac, salada, feijão, arroz, pouco, porque está de dieta. Tic-tac, tem que ir, compromisso. Encontra pessoas, conta uma besteira, ri de si mesma, presta atenção. Tic-tac, sai de um lugar, atravessa a rua, no meio da rua encontra alguém. Que saudade, que tem feito, me liga qualquer dia desses, temos que nos ver. Beijo. No rosto. Tic-tac, continua andando, esqueceu de passar no banco, a fila tá grande, decide que odeia bancos a partir de hoje. Tic-tac, chuva. Tic-tac, corre na chuva. Tic-tac, chega enxarcada no hospital. Jaleco branco, anamnese, em dez minutos. Tic-tac, qual o nome do senhor, tic-tac, o que te trouxe aqui, tic-tac, mas a dor era em pontada ou em aperto, tic tac, e tem algum caso na família, tic-tac, fala trinta e três. O professor aparece, já tou acabando, aquela cara de impaciência. Sorriso pro paciente, sensação de empatia, "volto daqui a pouco", ele não tem culpa do profesor ser chato. Passa o caso, fica feliz por pensar em alguma coisa que faça sentido, se empolga, pensa outra coisa que não tem nada a ver. Não tem problema. Abre o caderno, faz novo título, anota com nova observação: "Estudar isso". Aperta a mão do paciente, deseja boa sorte, deseja ficar mais. Tic-tac, a outra aula é naquele outro prédio, tem que ir já. Tic-tac, o professor não chega, tic-tac, alguém fala do programa da Luciana Gimenez, tic-tac, o cara da novela é sexy, tic-tac, lembram do professor. Muda de prédio, professor esperando, senta rápido, abre o caderno, droga, ficou sem saber o final da novela. Aula engraçada, uma risada, outra risada, fecha o caderno. Finalmente. "Até amanhã", sai correndo, não fala mais da novela, não fala mais com ninguém, todo mundo já foi. Tem atividade extra? Tem atendimento? Tem outra aula? Tem terapia? Tem reunião? Tem cansaço. Tic-tac, chegar logo em casa e tirar os sapatos. Tic-tac, banca de revistas, uma fofoca, outra fofoca, tudo caro demais. Tic-tac, porta do prédio, elevador não chega, vizinho charmoso, previsão do tempo - "chuva amanhã?". Tic-tac, não acha a chave na bolsa, precisa usar o banheiro. Tic-tac, pensa que deveria ter trocado de bolsa. Tic-tac, tudo se perde nessa bolsa, tic-tac, cadê a droga da chave, tic-tac, vou acabar fazendo aqui mesmo. Tic-tac, abre a porta, de luz apagada, sai correndo, vem fechar só depois. Tic-tac, telefone no silencioso. Liga o computador, liga a Tv, liga pra pizzaria. Sim, sim, uma grande, metade siciliano, metade brigadeiro. Troco pra 20,00. Vinte e cinco minutos? Brigada, boa noite, tchau. Senta no sofá, joga o caderno longe. Pega o controle, notícia de morte, notícia de assalto, desenho animado. Top 10 músicas, casos de família, curiosidades do peixe-boi, alguém falando da situação precária em que vivemos no Brasil. Abre a internet, lê um email, marca como não-lido, "respondo depois". Abre a página de relacionametos, fuxica a vida dos outros, vê umas fotos, perde a paciência. Liga pra casa, fala do banco, está com saudades, diz que vai estudar. Vê a novela. Reza pra novela não acabar. Acabou a novela, abre o caderno, fecha o caderno, fica pra amanhã. Põe uma música, liga pra alguém, decide contar que descobriu que fulano está namorando. Dá risada, dá boa noite, tic-tac, tem que dormir. Tic-tac, tá sem sono. Tic-tac, ficando com fome. Tic-tac, deveria estudar. Tic-tac, computador, de novo. Tic-tac, se não dormir agora, não acorda amanhã. Tic-tac, banho. Tic-tac, pilha de pratos. Tic-tac, esquece a pilha de pratos. Tic-tac, livro na cama. Tic-tac, tá ficando longe... Tic-tac, tic-tac, tic-tac... E tudo outra vez.

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Como um copo

A gente se enche da vida, dos dias, das coisas, das mesmas coisas, das coisas novas. A gente se enche dos amores todos, da raivinha basal que brota das manhãs cinzas, do orgasmo da noite anterior que não durou pra sempre, da maquiagem forte que esconde um traço mais humano. A gente se enche, e está tão cheio que não consegue mais parar.
A gente se esvazia, e se esvazia das lágrimas de dor, de parto, de alegria, de pena, de solidão. A gente se esvazia de tempo - do tempo pra amar, pra gritar, pra ligar prum amigo, pra correr no parque, ou na chuva ou no quadradinho do elevador. A gente se esvazia da gente, e está tão vazio que não consegue mais ser.
...

Mas, a qualquer distância - e a qualquer momento- o coração batendo percebe (metade cheio, metade vazio) uma cor, um som, uma luz, um perfume, algo qualquer no horizonte, uma verdade intrigante, um sorriso, um anel, uma borboleta, um pedido, uma outra vida.
E a gente se enche ainda mais.

A gente se enche de todos os clichês sem se importar, se enche de areia nos pés descalços, de uma bebida mais doce numa tarde mais dura, de uns planos ridículos, de cartas diárias de amor com rabiscos no canto direito do papel rosa. Se enche de espaço na cama, no sofá, no chuveiro, na mesinha de centro onde se toma o café da manhã. E estar tão cheio ainda é pouco!
A gente se esvazia do excessivo controle, do estacionamento que custa R$20,00 a hora, da obsessão pelo primeiro milhão. Se esvazia da discussão que subtrai, do pensamento que afoga mais, do detalhe irritante que não costumava sair da cabeça - "tem que ser azul-gourmet, não pode ser azul-marinho". A gente se esvazia até das meias verdades, e estar vazio é uma satisfação inteira.

No fim das contas, a balança não pesa tanto assim, nem ela, nem a vida. O peso todo é nosso, mais do que de qualquer outro. Estar cheio ou vazio não é uma opção, e mesmo que fosse, não faria nenhuma diferença. É tudo uma questão de estar disponível para si mesmo, colocando dali, tirando daqui, preenchendo de lá.
E a medida certa? Um coração atento...

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Tempo



De madrugada tudo é mais silencioso, e a imensidão escura me invade de um jeito ensurdecedor. Ponho uma música que costumava escutar quando esse ainda era meu lugar, e ela me faz desejar. Aproveitando que estou aqui, onde todas as lembranças brincam com meus sentimentos, resolvo subir numa cadeira e me arriscar no mundo que ficou no fundo do armário, numa caixinha de sapatos decorada com recortes de revista. Acho um caderno de folhas salmão, e dentro dele estou eu.
Tenho percebido ultimamente que todas as sensações novas e inominadas que experimento me apertam o peito de um jeito forte. Foi o que senti, um apertão no peito, e é como se ele me levasse todas as palavras. Sou tão assustadoramente parecida com quem eu costumava ser que tenho até medo. A mesma atitude. Os mesmos anseios. O mesmo jeito de sonhar. Travo um dialogo com o meu espelho de anos atrás, e descubro que a menina que existia antes está bem aqui, desejando na mesma intensidade ser feliz.
Eu costumava achar que liberdade se resumia simplesmente ao poder de ir e vir, e tendo a possibilidade em minhas mãos, tudo seria mais fácil. Esse foi um doce engano. Liberdade, acabei percebendo, está mais dentro do que fora, como a maioria das coisas contra as quais eu venho lutando. O maior monstro definitivamente mora num lugar bem mais perto, e o grito de reprovação é mais sutil do que eu imaginava. Preciso de mim antes de qualquer coisa, e depender só disso é uma tarefa das mais difíceis – principalmente para alguém que não costuma se olhar com tanta cautela. Continuo chorona. Continuo meio mal-humorada ao acordar depois de dormir muito. Continuo escrevendo ao som de música, uma mesma música que toca repetidamente mil vezes. Continuo roendo as unhas e adormecendo no sofá de casa, com cobertor quentinho e ventilador ligado. Minha letra, porém, está um pouco diferente (e me disseram uma vez que a letra muda mesmo com o tempo). Outras coisas mais mudam com o tempo, e o tempo, no fim das contas, foi generoso comigo...
O tempo me deu amigos sem os quais eu não viveria mais, me deu um dia em que tive o mundo nas mãos, me deu uma noite inesquecível. Me deu a festa de cinqüenta anos do meu pai, a filhinha de uma amiga que nasceu, a celebraçao do amor de um casal que eu adoro – em estilo frances! Me deu um fim-de-semana frio em que eu não precisei sair de casa, uma tarde em que cozinhei quiche e deixei a massa queimar, uma notícia que me fez pular de alegria. Me deu madrugadas e devaneios. Me deu horas a fio sem parar de dançar. Me deu momentos de frio na barriga, e mais que isso, me deu apertos mil no peito. O tempo – e eu diria, a vida – me deu vontade de mais, me deu vontade de mim!
Amanhece exatamente agora. Fecho o caderno, abro a janela. (...) Um algo novo me espera. Deixo todo o resto pra depois.