quinta-feira, 21 de fevereiro de 2013

Ao acaso

Eram eles, os dois, amantes de uma voz quase grave e uma voz quase doce, sorrateiramente dispostos ao convite da madrugada.
Aquela música pela noite, ela mesma repetidas vezes, meio triste, meio alegre, meio todas as coisas em uma só.
Eram novos, e velhos, e vivos e frágeis, e fortes de um jeito que nem se sabiam ser. Fizeram um pacto silencioso, cúmplice e desajeitado, abençoados pelas desculpas da escuridão. Sinal da cruz, cruzados dedos, viajaram desamedrontados à procura do tempo e de mais. Esse mais amorfo, perene no ar, cheio de significado - e só. Eram mil sentidos, nada submerso, cheiro vivo e flor da pele, flores à beira da estrada, onde pararam para fazer amor. A saia florida, e nela cabiam as pernas de gente, era toda ela gente sem tirar nem pôr. Ele de tênis amarelo, pretensioso rapaz com sonhos altos, barba por fazer, destino por fazer, toda a verdade sem nenhuma pressa em se realizar.
Eram, os dois, amantes da mentira de uma noite onde tudo era real. Poesia dialogada num convite para trinta anos depois, com filhos pelados correndo pro mar. Não haverá mar, nem criança, nem anos após - a não ser esses segundos restantes. Ela mora numa casa no alto, pequena e fechada,  um mapa na parede com todos os lugares do mundo em que precisa estar. Já ele mora numa casa no chão, escadas de vários degraus, madeira boa, discos clichês espalhados pela cama que dá vontade de dormir e acordar.
O mesmo batom dos lábios dela habita o pescoço dele, e os dois repetem a mesma cantoria melancólica do amanhecer. Viajam de volta nas horas deixando migalhas por todo o caminho a ser percorrido solitário num futuro distante onde não mais se saberá o sentido. O som daquele CD  de nome voraz. Tudo é voraz, até que a luz invada as retinas e sinalize que chegou ao fim. Pés descalços.  Saudade. Os dois, amantes da vida como ela é, deixam o resto inteiro ao acaso.

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