terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Peças

Eu tenho que encontrar duas ou três peças numa estante bagunçada, que ninguém mais se importa. Acho as três, acho mais que três, mas me desespero. Não basta. É como se não fosse suficiente. Nunca. A sessão acaba, o dia acaba, as pessoas voltam pra casa, entram no ônibus, abrem a porta da frente. Nem se anunciam, tiram os sapatos apertados, se livram do peso, sentam em frente à TV. As pessoas abrem a geladeira, comem uma coisa qualquer em meio a um relato de incidente quase imperceptível do meio da tarde. Elas telefonam no horário mais barato, cortam as unhas, preparam ovos mexidos. As pessoas abrem um novo sabonete com fragrância de framboesa que compraram para experimentar. Escovam os dentes com a pasta de sempre, com a escova velha de sempre. Jogam fora a correspondência antiga, ou a que veio pro destinatário errado. Repensam o dia seguinte. Dormem juntas, separadas, sonham. Nesse ponto, especificamente nesse, eu tenho medo. Porque eu volto. Continuo a procurar as peças, continuo só, no quarto vazio com a estante bagunçada. Estou já com um monte de peças, e eu não preciso de todas elas, eu sei que não preciso me esforçar tanto pra nada. A verdade é que tudo devia ser bem mais leve, principalmente quando se está subentendido. Eu podia entregar aquelas lá e deixar o resto fluir. Ninguém ia reclamar comigo... Afinal, três é um número bom. Mas eu não me convenço. Ao fechar os olhos, começo a procurar peças...

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