segunda-feira, 6 de junho de 2011

Hoje

Todos os dias, invariavelmente, a gente revive. É o pressuposto dos dias em que a gente respira. Hoje passei por uma senhora com olhos cansados, que praticamente não enxergavam mais. Acho que os olhos dela simplesmente se aposentaram, falaram que era tempo de evitar ver tanta coisa mais. Partimos de um sorriso cúmplice e tímido, começamos a conversar, primeiro sobre a demora, depois sobre a paciência. Há 30 anos ela havia trabalhado naquele andar de hospital, hoje não andava sem bengalas. Eu, que tinha usado os meus olhos a noite inteira pra explodir o que estava dentro de mim, agora olhei atentamente aquela voz que falava com o peso de todo o necessário saber do mundo. Ali, ela era a existência. Um ônibus veio e a levou, como carregada pelo vento. Antes de sair de casa eu havia pedido baixinho que a vida me ensinasse alguma coisa, e nos cinco minutos em que estava andando em busca do sol, a vida se fez com noventa e poucos anos, mais real que nunca.


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Agora observo o caminhar das pessoas bem vestidas. Estou sentada com o computador à minha frente, que me esconde da indiscreta curiosidade que me impõe observar a vida alheia. Não sei nem se as pessoas se importam com o fato de estarem sendo investigadas. No fundo, no fundo, estou atrás de emoção. O que me interessa mesmo é a mão na outra mão, o bocejo da moça atrás do balcão, as pernas cruzadas do homem só, olhando pro nada. Cabelos brancos que abraçam cabelos brancos. E por aí vai. Entre chaves balançando dentro dos bolsos, guarda-chuvas pendurados nos braços, cachecóis enforcando os pescoços, acho que ninguém me vê. As florzinhas bem pequenas na blusa rosa disfarça a angústia lamacenta e negra que mora em mim. Não aparento ter envelhecido dez anos nessa última madrugada. Mas sinto como se de repente a dimensão rígida e extravagante da minha dor fosse perdendo perna, perdendo força uma vez que entro silenciosamente em contato com toda essa sutil emoção percebida ambulante pelo mundo. O homem ao lado, misterioso em seu chapéu estilo Panamá, me provoca a pensar que há uma imensidão ainda intocável logo perto de mim. É bem assim que deixo de existir como tudo e só.


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